São Paulo, Terça-feira, 09 de Março de 1999
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Leia a continuação da íntegra do discurso de Gustavo Franco

118. Aqui no Brasil os avanços nessa direção foram importantes, mas ainda insuficientes. A independência só pode existir se o BC é inteiramente afastado de assuntos fiscais e alguns marcos importantes nessa direção foram o fim da chamada "conta movimento", a manutenção da impermeabilidade da carreira do funcionário do BC e o mandamento constitucional de o BC não poder financiar direta, ou indiretamente o Tesouro (art. 164, parágrafo 1).
119. Este último avanço foi importantíssimo, mas, como é comum nesses casos, havia um passado a resolver: obrigações do Tesouro no balanço do BC, reconhecidas (e constituídas antes de 1988) e ainda em ser (como se sabe, no Brasil, não só o futuro, mas o passado também é incerto). Foram necessárias pelo menos duas rodadas de "limpeza" no sentido de acertar as contas quanto a pendências, a primeira a famosa "operação caixa-preta" em 1993, e a segunda a medida provisória 1789 assinada apenas agora em dezembro de 1998, modificando a forma de remuneração da Conta Única e transferindo ao Tesouro prejuízos e despesas de sua responsabilidade que estavam no balanço do BC. Um grupo de trabalho formado pelo CMN levou um ano para preparar o texto, tendo viajado o mundo inteiro para verificar as experiências de outros países.
120. Avançamos também em limpar o Conselho Monetário Nacional de influências que nada tinham que ver com a saúde da moeda.
* 121. Antes da MP 542, de 1/7/94, a MP do Real, o CMN era integrado por todos ministros da área econômica, vários da área social (cuja contribuição para os assuntos monetários e, em particular para a austeridade fiscal nem sempre foi positiva), todos os presidentes de bancos oficiais (ou seja, bancos regulados pelo próprio CMN), cinco membros da iniciativa privada, um deles representante dos sindicatos, outro o presidente da Febraban. A EM 205, que introduziu a MP 542, argumentava que a presença dessas pessoas "distorce o caráter de instituição pública do Conselho, pois envolve partes interessadas em decisões onde deve prevalecer exclusivamente o interesse público e o compromisso com a estabilidade da moeda".
122. Pela lei 9.069/95, o CMN ficou reduzido ao presidente do BC, o ministro da Fazenda e o do Planejamento, criando-se assim um foro de coordenação macroeconômica, de deliberação sobre normas, supervisão bancária e autorizações e de uso de instrumentos financeiros e creditícios para fins fiscais (os contingenciamentos de crédito e limitações às dívidas de entidades públicas).
123. Outro avanço da maior importância foi a criação do Copom: um simples procedimento administrativo, criado através de uma circular do BC, de 20/ 6/96, que resultou em envolver a decisão sobre taxas de juros num ritual técnico transparente, à semelhança do que é feito em toda parte do mundo, que teve como consequência conter a determinação das taxas de juros dentro de parâmetros estritamente econômicos. Méritos cabem ao diretor Francisco Lopes pelo empenho em consolidar esta idéia.
124. Mas ainda há problemas. Um deles é o tratamento dado à agricultura e aos compulsórios. Na prática, ainda temos uma espécie de "conta movimento verde". O CMN não tem a capacidade de apreciar como deveria o mérito da política de crédito rural (como, aliás, de qualquer outra política setorial) e nem tampouco consegue aferir quanto custam as providências e de que orçamento saem os recursos. Com frequência, são usados recursos dos depósitos compulsórios para a agricultura, o que é errado, como é errado usá-los para o crédito educativo ou para a indústria da construção. Não há nada impróprio na concessão de subsídios a setores que os merecem, mas a questão é fiscal, e deve ser tratada no orçamento. Ademais, os compulsórios servem para criar uma demanda cativa por títulos públicos, que não é necessária nem saudável do ponto de vista de um verdadeiro mercado de capitais. Num horizonte de médio prazo os compulsórios e "direcionamentos" devem acabar e os setores que dependem de recursos dessas fontes devem buscar formas orçamentárias de financiamento.
Mandatos e da quarentena
125. Não se pode falar a sério sobre autonomia operacional do BC sem se discutir os mandatos de seus dirigentes.
126. O projeto de lei complementar aprovado pelo Senado, e que vem sendo discutido na Câmara, está contaminado por preconceitos e corporativismo, de tal sorte que sua aprovação, como está, representaria um enorme retrocesso. O relator do projeto na Câmara, deputado Manoel Castro, compreendeu o problema e o interesse e a relevância do tema fez o Executivo enviar à Câmara o seu próprio projeto, trazendo as contribuições desta casa. Todos aqui depositamos enormes esperanças nesse projeto.
127. Em primeiro lugar é incluído o mandato, no caso, de três anos com recondução. São mandatos não coincidentes com os do presidente da República, o que procura atender o propósito de se ter uma diretoria que não possa ser modificada integral e imediatamente no momento em que mudam os governos. A continuidade na gestão da moeda é preservada, sem prejuízo de transições, que podem ser feitas com o tempo, conforme a filosofia de cada governante. Garante-se, assim, que o BC guarde certo distanciamento da questão política. Seria bom para todos, e uma demonstração de maturidade da nossa democracia, tanto que até do PT vieram idéias nessa direção. A despolitização da moeda interessa a todos, embora sejam poucos aqueles com coragem para propô-la.
128. Outro ponto importante do projeto do Executivo diz respeito à quarentena "anterior". É um despropósito exigir que um dirigente do BC deva estar afastado do sistema financeiro antes de sua nomeação, servindo tal exigência apenas para aumentar a possibilidade de escolhas medíocres que recaiam sobre pessoas sem vivência no sistema financeiro. O mundo financeiro é extremamente dinâmico: privar o BC de acolher profissionais em dia com as práticas de mercado é um custo excessivamente alto para o país em nome de benefícios que não se consegue enxergar com nitidez.
* 129. O argumento a favor da quarentena "anterior" é tão falacioso que serviria para se dizer, por exemplo, que um parlamentar não poderia exercer cargo de direção de empresa estatal, pois sua gestão estaria comprometida por uma "lealdade" anterior e estranha ao cargo que desempenha. Ou que um industrial não poderia ser, por exemplo, ministro da Indústria e Comércio, ou do Desenvolvimento.
130. Já a quarentena "posterior" não é apenas necessária mas essencial. O projeto propõe que seja de um ano e que o funcionário mantenha a remuneração que tinha enquanto dirigente. Afinal, se o indivíduo não vai trabalhar durante toda a quarentena, senão como docente, e não é aposentado pelo setor público, deve ser remunerado pelo impedimento a seu direito constitucional de exercer a sua profissão. Tenha-se claro que a norma ainda não existe, mas seu fundamento ético é evidente. Tomo emprestado aqui, do próprio deputado Manoel Castro, uma referência ao Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil Federal (decreto 1.171, de 22/6/94): a dignidade, o decoro, o zelo, a eficácia, e a consciência dos princípios morais são primados maiores que devem nortear o servidor público, seja no exercício do cargo ou função, ou fora dele". A quarentena "posterior" é uma exigência ética que, pessoalmente, vou acatar sem nenhuma lei que me obrigue (... e sem a remuneração).
A regulamentação do artigo 192.
131. A lei da quarentena e dos mandatos é importante e deve ser votada. Mas ela cria um problema sério sobre o qual é preciso refletir. Nossa Constituição contém uma excrescência que vem nos causando problemas há muitos anos: a limitação dos juros reais em 12% (artigo 192, parág. 3). Até agora foi possível neutralizar seus efeitos graças à interpretação do STF, que entendeu que a norma não era auto-aplicável e que o artigo 192 tinha de ser regulamentado todo ele através de uma só lei complementar.
132. O projeto dos mandatos e da quarentena pode introduzir um fato novo nesse panorama e um enorme problema potencial: pois se a Câmara votar o projeto estará fazendo o que o STF disse que não podia ser feito, ou seja, regular apenas uma parte do artigo 192, mas não o todo. Diante disso, imediatamente, deve-se esperar um festival de projetos demagógicos procurando regulamentar os 12%.
133. A solução para o problema está no Senado. A partir de um Projeto de Emenda Constitucional que, originalmente, propunha a eliminação do artigo 192, formou-se uma Comissão, tendo como relator o senador Jefferson Peres, que criou um substitutivo propondo apenas duas modificações no artigo 192: a primeira para que ele possa ser regulamentado em partes, ou seja, que possam ser feitos projetos específicos para diferentes temas ali abordados (Banco Central, cooperativas de crédito, seguros, previdência privada, bancos, liquidações, mercados de capitais, etc.); a segunda, a eliminação dos 12%. Caso a comissão aprove este substitutivo, e o plenário do Senado vote essa emenda, ficaria prejudicado o encaminhamento de projetos vindos da Câmara regulando os 12%, pois, no máximo, morreriam todos ao chegar ao Senado, que não poderia votar lei regulamentando matéria constitucional cuja supressão acabou de votar.
134. É preciso que o país dê início à modernização da legislação sobre o sistema financeiro. É preciso iniciar a regulamentação do artigo 192, e o assunto está nas mãos do Senado, na forma da Emenda Jefferson Peres, que procura dar fim a este crime contra o bom senso representado pelo tabelamento dos juros em 12%, que já deveria estar no lixo da história há muitos anos.
135. E ao mencionar o Senado, não poderia deixar de agradecer, de público, o apoio que tive do seu presidente, doutor Antonio Carlos Magalhães, que gostaria de ter trazido a esta casa para melhor conhecer o que aqui se faz, e estabelecermos melhores bases para o trabalho conjunto do BC e do Senado, especialmente no trâmite dos pedidos de endividamento público, no nível federal como estadual e municipal. Meus votos para que o meu substituto dê consequência a este convite, e avance mais um degrau no relacionamento desta casa com o Senado Federal.
136. Mas dentre tantos outros senadores com quem convivi, e de quem aprendi lições as mais diversas, queria, nesta ocasião homenagear a todos através de apenas um deles, um dos melhores, e que não está mais entre nós, o senador Vilson Kleinubing.
137. A Lei de Responsabilidade Fiscal que, como já mencionei, será um marco para a transformação do regime fiscal brasileiro nas três esferas de governo, tem muito da Resolução 78 do Senado Federal, obra (dentre tantas) do senador Kleinubing. Foi dele, há meses atrás, que ouvi pela primeira vez de um político, que o país estava preparado para um Orçamento com Déficit Zero, expressão que começa a ser ouvida com mais frequência por todo o país. O senador Kleinubing foi um pioneiro. Foi um exemplo de coerência, convicção e firmeza, e deixou nesta casa uma legião de amigos e admiradores, dentre os quais eu me incluo.
Transparência
138. Tão importante quanto a substância, no serviço público, é o modo de se fazer as coisas, de modo que, um valor fundamental a ser reinventado todo dia é o da transparência.
* 139. Foi esta a preocupação quando resolvi inovar em nosso relacionamento com o Tribunal de Contas da União, explorando os limites do possível para a abertura de informações aos auditores do TCU. Trata-se de tomar o TCU como parceiro, como órgão que constantemente nos provoca na direção do aperfeiçoamento. O BC sempre estará disposto a acatar os bons conselhos de auditores, internos ou externos, no sentido de melhor executar suas tarefas. Por isso, praticamente não houve sigilo entre as duas Casas, como foi meu compromisso desde o início,quando tive a satisfação de visitar o Tribunal e seu então presidente, doutor Homero Santos.
140. Desde quando comecei a trabalhar nesta casa tive para mim que o BC precisava explicar melhor o que fazia à opinião pública. A incompreensão era a regra e nossa percepção era de que ela apenas poderia ser combatida através de uma mudança de atitude, um trabalho cotidiano de prestação de contas, e com este propósito o meu antecessor, doutor Gustavo Loyola, trouxe para o BC, uma profissional de imprensa de extraordinário valor, doutora Sylvia Faria, não apenas para fazer funcionar uma assessoria de imprensa competente -coisa que o BC vinha tendo dificuldades em constituir há tempos-, mas para uma missão muito maior: ela deveria estar presente em todas as reuniões da diretoria, formais e informais, incluindo as do Copom, pois apenas desta forma ela seria capaz de explicar, com autoridade e com a linguagem apropriada, o que se faz dentro desta casa, à imprensa e à sociedade.
141. Mesmo sem a designação formal, Sylvia seria nossa porta-voz, nossa consciência, alguém a nos lembrar das pessoas lá fora dependendo do nosso trabalho e querendo entendê-lo. E foi assim do primeiro ao último dia: Sylvia esteve conosco em cada uma de nossas decisões. Nunca houve nada a esconder, pelo contrário, apenas orgulho em se exibir o trabalho realizado e todo o interesse em explicar melhor.
142. Meu agradecimento muito especial a Sylvia, pelo profissionalismo e pela habilidade como inventou sua função e conquistou esta casa. Meus agradecimentos pessoais pelos inúmeros conselhos e pela sabedoria que comigo partilhou.
143. Durante a minha gestão como presidente, procurei levar o conceito de "Diretoria Colegiada" às últimas consequências: nada foi decidido sem o concurso de todas as diretorias e quase que 100% do tempo por consenso. Isso apenas foi possível face à qualidade das pessoas compondo a nossa diretoria. Foi uma honra e um privilégio trabalhar com esse grupo. Além dos que já mencionei pelas suas realizações específicas, eu queria estender meus agradecimentos e homenagens ao nosso diretor de administração, Carlos Eduardo Tavares, que enfrentou, no seu domínio, crises quase tão sérias quanto às da Rússia e da Ásia, sempre com sabedoria e competência. Ao meu grande amigo Demóstenes Madureira do Pinho, o meu mais especial agradecimento pela competência, pelo patriotismo, pelo desprendimento e pela solidariedade, especialmente nesses meses extremamente difíceis. O diretor Demóstenes não apenas foi parceiro em cada uma das realizações desta casa, mas assumiu extraordinárias responsabilidades. O Brasil tem muito a agradecer ao diretor Demóstenes.
Mudanças recentes na política cambial
144. Por fim, eu já me alonguei demasiado, não queria deixar de encerrar essas minhas reflexões marcando minha posição sobre os eventos recentes, em especial sobre as mudanças na política cambial. Durante todos esses anos, não fui homem de esconder minhas opiniões, de modo que não posso encerrar esta minha jornada sem dizer o que eu penso sobre o que vem se passando.
145. Conforme já mencionei acima, tivemos controvérsias sobre a política cambial lá no início do Real, e diversas posturas oportunistas se montaram a partir daí: críticas ao Real e às mudanças que determinou, os fracassos que decorreram do sucesso da nova moeda, os partidários das perdas internacionais, e tudo isso.
146. Boa parte dessas querelas já havia esfriado, inclusive a própria alegação de defasagem cambial, quando vieram a crise da Ásia e a moratória da Rússia. É curioso que os danos causados por essas crises, que nada tinham que ver com o Real, e tiveram como característica a sua total imprevisibilidade, foram danos que se insistiu serem intrínsecos ao Plano Real.
147. Isso se passou com muita clareza no debate sobre o desemprego. Estávamos próximos a uma eleição e talvez por isso proliferasse a leitura equivocada que o desemprego crescia por causa do Plano Real e suas âncoras, e não porque o mundo passava por crises financeiras da maior gravidade, e que aumentaria o desemprego no Brasil qualquer que fosse a política cambial, ou o presidente da República. Na verdade, devemos nos lembrar que o Brasil enfrentou três grandes crises financeiras internacionais durante a vigência do Real, e provavelmente, se não fosse o Real, essas crises teriam sido muito mais letais para o Brasil. Basta lembrar de como era precária nossa posição em 1993. Será que alguém genuinamente acredita que em 1993 nós estávamos menos vulneráveis a choques externos do que em 1998?
148. O Plano Real fortaleceu a nossa economia de inúmeras maneiras. Ficamos mais fortes em tudo que a inflação nos debilitava. Exatamente porque a economia vinha se fortalecendo -com a privatização, a abertura, o crescimento da produtividade e tudo o mais- e vinha também desvalorizando a moeda de forma gradual e segura sem acordar a inflação é que deve ser vista como exótica e tola essa tese que a demora em corrigir o "erro original" (as perdas internacionais) teria feito as coisas piores.
149. Os termos do problema são, assim, habilmente invertidos: fica parecendo que a persistência e a coerência em perseguir as reformas não são virtudes, e que as reformas não serviram para fortalecer a economia. Quando foi exatamente o oposto: ganhamos o respeito da população brasileira e da comunidade internacional pela nossa coerência e obstinação em realizar reformas. Criamos perspectivas para o nosso desenvolvimento, criamos esperança e confiança na nossa economia. E não foi fácil. Não se tem idéia do tempo que leva, e do trabalho que dá, construir credibilidade. E do quanto a confiança é importante. Também não se têm idéia da rapidez com que se pode perdê-la.
A resposta à crise da Rússia.
150. Em função dos eventos que se seguiram à moratória da Rússia, íamos ter um ano difícil em 1999, pois ao sustentar o regime cambial, a inflação baixa, o poder de compra dos salários e os nossos compromissos internacionais teríamos de manter políticas monetárias apertadas e teríamos de avançar no terreno fiscal com muito maior velocidade com que fomos capazes de andar no passado. Teríamos de desfazer a má impressão causada pelo fracasso do Pacote 51 e convencer a população que, de uma vez por todas o Brasil ia enfrentar de frente o problema fiscal. As previsões dos economistas, antes da desvalorização, convergiam para um pequeno declínio do PIB, inflação perto de zero, desvalorização cambial real da ordem de uns 8%, e o desemprego em lenta ascensão. O déficit em conta corrente ia diminuir, ficando em algo como US$ 25 bilhões, mas teríamos investimentos diretos de uns US$ 15 bilhões, numa estimativa conservadora. Normalizadas as condições dos mercados internacionais, ainda que apenas no segundo semestre, teríamos uma recuperação natural da economia, e tínhamos um pacote de ajuda externa da ordem de US$ 41,5 bilhões para fazer a transição.
151. Esta era uma estratégia para lidar com uma crise, concebida para uma economia ainda fazendo reformas essenciais para recuperar nossa capacidade de crescer com rapidez. Não era, nem poderia ser um plano de desenvolvimento. De toda maneira, tínhamos uma política, um plano que fazia sentido, a ajuda de 20 países, e cinco anos de execução bem-sucedida de um programa de reformas. Tínhamos duas semanas dentro do novo governo, e pouco mais de dois meses de vigência do acordo com o FMI, no âmbito do qual já havíamos desembolsado cerca de US$ 9 bilhões.
152. Só dependíamos de nós mesmos: aprovar os ajustes no Congresso e ter paciência de recuperar a confiança dos mercados fazendo um dever de casa que sempre soubemos qual era, desde o PAI. Tratava-se de construir o nosso futuro. E só tínhamos a temer a nossa própria insegurança.
153. A trajetória se mostraria acidentada porque não esperávamos perder aquela votação em dezembro (contribuição dos servidores), e nem que o governador Itamar Franco tomasse as atitudes que tomou. Em vez de cem dias de trégua, o novo governo já começava recebendo pesado bombardeio de artilharia, e de áreas onde talvez devêssemos esperar boas notícias.
Mudanças de rumos
154. Que fazer? Perseverar ou inovar? Trilhar caminhos conhecidos, mas difíceis, os caminhos mais longos de que falava a EM 395/93? Ou tentar uma mudança de modelo, uma mudança de regime? A tentação era grande. Por que não experimentar alternativas que pareciam menos dolorosas para o país, especialmente se existiam tantas pessoas sugerindo que o regime cambial era o grande problema do país, o grande entrave ao desenvolvimento? Tantos ministros, tantas opiniões de peso, no governo e na oposição, tantas sumidades a argumentar pela desvalorização. Seria eu o único teimoso a argumentar que a desvalorização não resolveria coisa alguma e apenas contribuiria para fazer as coisas muito piores?
155. Afinal a política cambial nunca foi minha, mas um apolítica de governo, e como não há certezas nesse domínio, teríamos de tomar uma decisão, no mais alto nível, sobre como proceder.
156. Acabamos admitindo uma desvalorização de grandes proporções, embora contássemos com US$ 36 bilhões em reservas e cerca de US$ 30 bilhões ainda a serem desembolsados do acordo externo, sem falar nas nossas possibilidades de intervenção em derivativos e no terreno regulatório.
157. A defesa da moeda não falhou, nem caiu vítima de um irresistível ataque especulativo: foi abandonada porque muitas vozes influentes acreditavam que havia uma maneira de fazer as coisas mais fáceis. Uma coalizão de poderosas opiniões sustentava, já de algum tempo, que uma alteração na política cambial permitiria uma redução mais agressiva dos juros e mais crescimento, independentemente da situação fiscal, cuja melhoria poderia, inclusive, ser mais lenta do que gostaria o BAC.
158. Aos olhos dessa poderosa corrente de opinião, havia, portanto, uma saída fácil para os problemas econômicos do país, a desvalorização cambial. Dizia-se que a desvalorização não produziria muita inflação, ou a traria de volta numa magnitude que não chegava a ser um problema. Haveria, segundo consta, um método australiano, ou coreano, de desvalorizar sem inflação. A inflação, é preciso lembrar, sempre teve amigos em posições importantes.
159. Mas como saber se essas teses eram corretas senão experimentando?
160. A defesa da moeda foi, assim, desmontada sem sangue, no plano da persuasão. O presidente da República, a quem cabia decidir, tomou a sua decisão, e conforme afirmei recentemente, em minha nota de 13.01.99, jamais seria minha intenção servir como embaraço a esta reorientação das políticas de juros e câmbio, que se tornou natural, diante do desejo do presidente da República.
O futuro.
161. Quem se debruçar sobre as perspectivas para 1999 pode deixar de ter dúvidas sobre o futuro. Dúvidas possivelmente maiores que as que tínhamos. Os cenários econômicos não melhoraram com as mudança,s pelo menos por enquanto.l
162. A desvalorização não trouxe ainda os benefícios esperados pelos seus defensores. Se tornou ela própria um problema ainda maior do que o que tínhamos antes. Ao que tudo indica, a tese da saída fácil estava errada (aliás, como em outras ocasiões no passado) e deve ficar claro que os obstáculos ao crescimento -na forma do desequilíbrio fiscal e das reformas incompletas- continuam exatamente onde estavam, a maior parte deles do mesmo tamanho ou maiores.
163. Acho que perdemos muito em credibilidade, principalmente dentro do país, dentre os que mais acreditavam em nós. Acho que perdemos uma parte ponderável do Contrato Social que construímos com tanto cuidado ao longo desses anos, e que tinha na estabilidade da moeda, e das regras da economia, os eu principal elemento.
164. Será necessário um imenso esforço do governo para resistir às tentativas na direção da reindexação e mobilizar a população no sentido de rejeitar as práticas do tempo da inflação. A estabilidade é uma conquista que deve ser preservada a todo custo.
165. Se formos bem-sucedidos em reduzir os impactos inflacionários das mudanças na política cambial é possível que, ao final de 1999, tenhamos uma desvalorização real na taxa de câmbio em percentual superior à que teríamos se não tivéssemos alterado a política cambial. Mas, para isso, será necessária extrema firmeza e também muita sabedoria da parte da nova equipe do BC, que, eu tenho certeza, está plenamente à altura do desafio.
* 166. Com efeito, teremos ganhos reais no câmbio relativamente à política anterior para qualquer taxa de inflação acumulada inferior a 40% se o dólar estiver n fim do ano a R$ 1,80. Ou para uma inflação inferior a 53% acumulados se o dólar ficar em R$ 2,00. Mas mesmo que não haja ganho cambial, haverá uma melhoria na balança comercial em função da maior desaceleração da economia.
167. Todavia, se as novas políticas vão funcionar ou não, e eu tenho certeza que vão, dependerá de o país ser capaz de enfrentar um velho problema: o desequilíbrio fiscal. Esta continua sendo a mãe de todas as batalhas. Não tenhamos ilusões, sem uma melhoria substancial em nossas contas fiscais não há regime cambial, nem de política monetária, que nos livre de um desempenho medíocre na economia. Por ora, a mudança cambial apenas nos tornou a vida mais difícil e se a situação fiscal não melhorar, o sacrifício terá sido em vão.
168. Com as novas políticas que se desenham, temos aqui o fim de um ciclo, e o começo de outro. O passado encerra muitas lições, como procurei demonstrar, mas é sobre o futuro que devemos nos debruçar.
169. Eu acredito no Brasil. As reformas que fizemos durante esses últimos anos criaram imensas possibilidades para o país. Há muita prosperidade já encomendada mercê da privatização, da abertura, da estabilização e da reestruturação do sistema financeiro. Essas reformas são irreversíveis, e não apenas precisam ser defendidas como é preciso avançar com ímpeto ainda maior. Foram elas que removeram obstáculos ao crescimento, como veremos nos próximos anos.
170. Eu acredito no presidente Fernando Henrique, que entende como ninguém os problemas do país e sabe navegar em mares agitados. Foi sua habilidade que nos trouxe até aqui, presentes todas as dificuldades que aqui procurei narrar. O presidente vai nos conduzir para fora dessa crise, com toda certeza. Tudo ficou mais urgente, e esta urgência tem de ser utilizada com sabedoria para fazer o Brasil encarar de frente, de uma vez por todas, seus velhos problemas. Temos, como nação, um compromisso com o nosso futuro, e o presidente saberá como construir as bases de uma nova etapa de prosperidade com inclusão social.
171. Eu acredito na extraordinária competência do ministro Pedro Malan, e na capacidade dele e de sua equipe de ajudar o presidente a reconduzir o barco para águas mais tranquilas. As âncoras têm de ser reconstruídas e o desenvolvimento irresponsável (e mefistofélico) tem de ser esconjurado de uma vez por todas. A Sociedade, em particular a classe política, precisa responder ao desafio que o presidente fez em seu discurso do Itamaraty: o desafio do orçamento equilibrado, o desafio de construir um Estado que caiba dentro de si próprio, o desafio da Responsabilidade Fiscal.
172. Eu queria dizer de público, que foi um privilégio e uma honra trabalhar com o ministro Pedro Malan, amigo das horas impossíveis, um exemplo a ser copiado sobre como servir a seu país, apaixonadamente, mas sem as ambições pessoais que envenena, por vezes, a tantos admiradores, dentre os quais estou na primeira fila, e, trabalhando com ele, uma equipe de talentos tão extraordinários, com os quais, devo dizer, foi um privilégio trabalhar. Eu lamento deixar especialmente os amigos Pedro Parente e Amaury Bier, companheiros de tantas guerras, num momento tão difícil, quando toda a ajuda é necessária e quando a solidão de trabalhar pelas maiorias silenciosas é mais pesada. Aos colegas da chamada Equipe Econômica, incluídos os colegas da Secretaria de Planejamento e do Ministério do Orçamento, deixo os meus melhores votos de sucesso nas batalhas em andamento e lembro que o Brasil, a começar por mim, torce por vocês.
173. Acredito, todavia, no extraordinário reforço na equipe econômica que estamos tendo a partir da equipe que assume o BC. Faço meus melhores votos ao novo presidente
Armínio Fraga, e também a seus companheiros diretores, à disposição dos quais sempre estarei, se a minha experiência for de alguma serventia.
174. Para finalizar, finalmente, eu queria reafirmar que eu preferia que as coisas tivessem acontecendo de modo diverso. Na verdade, é exatamente por isso que aqui está se encerrando a minha missão nesta casa. O governo segue o seu rumo, e eu o meu. Aprendi na universidade, para onde estou retornando, os valores da honestidade intelectual, da coerência, da integridade e do senso de propósito. Eu trouxe esse pequeno e intangível patrimônio para Brasília em 1993 e o levo de volta para a universidade, seis anos depois, apenas enriquecido. A função pública é um duro teste para esses valores, um grande desafio ético, que eu acredito ter vencido.
175. Muito obrigado.


Os trechos marcados com asterisco não foram lidos durante o discurso




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