São Paulo, domingo, 09 de maio de 2004

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ARTIGO

Graças aos céus pelo câmbio flutuante

SAMUEL BRITTAN
DO "FINANCIAL TIMES"

Já faz algum tempo que o FMI (Fundo Monetário Internacional) não publica algo tão otimista quanto o recente "Panorama Econômico Mundial". O crescimento mundial, neste ano e em 2005, foi estimado em 4,5%, o que supera a tendência histórica, e os autores do estudo dizem que ele "pode ser ainda maior do que projetamos". Ainda assim, eles não fariam parte da equipe do FMI se não enfatizassem as ameaças a essa perspectiva benigna. Destacam, por exemplo, o grande déficit no balanço de pagamentos norte-americano. Outros analistas se preocupam com as deficiências de demanda na zona do euro. E por trás de tudo existem preocupações quanto a "ameaças geopolíticas", o nome-código escolhido para o terrorismo e para os distúrbios do Oriente Médio.
Não pretendo pontificar sobre a severidade dessas ameaças ou sobre a forma como elas evoluirão. O que é mais provável é que a economia mundial talvez já estivesse em sérias dificuldades caso continuasse emaranhada no sistema de paridades cambiais fixas definido pelo acordo de Bretton Woods. Para parodiar uma canção popular daquela época, "graças aos céus pelas taxas de câmbio flutuantes".
Com uma taxa de câmbio fixa, o governo dos Estados Unidos teria de se preocupar muito com um déficit no balanço de pagamentos equivalente a 5% do PIB (Produto Interno Bruto). A pressão por um aperto prematuro da política macroeconômica seria muito maior. E, pior, a ameaça ao balanço de pagamentos tornaria as pressões protecionistas mais respeitáveis e haveria numerosas propostas para restringir tanto as importações quanto as exportações de capital.
Não é preciso consultar uma bola de cristal. Nos últimos anos do sistema de Bretton Woods, os Estados Unidos impuseram um "imposto de equalização", como era conhecido, que, na verdade, representava um tributo sobre a exportação de capital, e, para economizar moeda estrangeira, as forças militares norte-americanas estacionadas no exterior eram obrigadas a comprar suas provisões de fornecedores dos Estados Unidos, o que muitas vezes representava um tremendo acréscimo de custo.
Havia também críticas dos governos da França e da Alemanha aos Estados Unidos por supostamente viverem do crédito oferecido pelo resto do mundo, que vinha acumulando reservas em dólar, cada vez menos bem-vindas. Essas queixas hoje certamente agravariam as causas da fricção entre os Estados Unidos e a Europa. Graças aos céus, as transferências de dinheiro de um lado para o outro do Atlântico são agora basicamente transações privadas.
As taxas flutuantes de câmbio eram defendidas originalmente por uma coalizão arco-íris de economistas pró-mercado e de "expansionistas" radicais. A reforma não surgiu devido à influência combinada dessas duas facções, mas porque a inflação gerada pelo financiamento da guerra no Vietnã não permitia mais que os Estados Unidos pagassem em ouro aos demais países que desejavam se livrar de suas reservas em dólar. Além disso, a indústria norte-americana vinha pressionando por um dólar mais baixo (como acontece freqüentemente). Richard Nixon, por isso, fechou o "guichê do ouro", em 1971, e permitiu que o dólar flutuasse livremente nos mercados de câmbio. Houve mais uma tentativa de reconstruir um sistema de paridades cambiais fixas. Mas, depois de 1973, as taxas de câmbio flutuantes prevaleceram nas principais áreas cambiais do mundo.
Permitir a livre flutuação do dólar não era uma decisão inevitável. Foi publicado recentemente um livro de história alternativa que "cobrira" acontecimentos hipotéticos como o arquiduque Francisco Ferdinando sobreviver ao atentado em Sarajevo (*), que causou a Primeira Guerra Mundial, em 1914. Uma narrativa sob a qual o sistema de paridades cambiais fixas tivesse sido reparado nos anos 70 seria, no mínimo, igualmente plausível.
Um governo diferente nos Estados Unidos poderia ter tentado renovar o acordo de Bretton Woods depois de aumentar o preço oficial do ouro ou poderia ter aplicado freios à economia, em uma tentativa de manter a paridade cambial. É fácil esquecer o quanto era violenta a oposição às taxas de câmbio flutuantes. Raymond Barre, quando era o combativo comissário europeu que representava a França, disse-me que, se desejava uma taxa flutuante de câmbio, o Reino Unido não deveria aderir ao Mercado Comum. Eu era tímido demais para responder o que teria escolhido, se pressionado. Milton Friedman foi informado por Edward Heath, então primeiro-ministro britânico, de que uma taxa de câmbio flutuante era incompatível com a Política Agrícola Comum. Infelizmente, a alegação não se sustentou, como pudemos ver. De fato, eu mesmo recebi conselhos amistosos de um tipo importante na City de Londres, segundo o qual defender as taxas de câmbio flutuantes ameaçaria minha carreira.
Além disso, os governos demoraram a se ajustar ao novo regime. Inicialmente, o presidente Nixon acompanhou a taxa flutuante para o câmbio do dólar com uma tarifa adicional de 10% sobre as importações, um exemplo perfeito de duplicação daninha. Mesmo agora os Estados Unidos expressam irritação com a "flutuação manipulada" da China e do Japão. Mas, mesmo que esses países estejam armazenando dólares, são os seus cidadãos que se vêem forçados a pagar caro pelas importações e os Estados Unidos que recebem subsídios.
Enquanto isso, meu conselho a quaisquer novos membros da União Européia que estejam pensando em aderir ao euro seria, em um idioma que a maior parte dos Estados da Europa oriental que aderiram à união ainda compreende bem: Nyet. Ou: "A hora ainda não é propícia. Mantenham-se livres enquanto puderem".


(*) "What Might Have Been" ("O Que Podia Ter Acontecido"], editado por A. Roberts (Weidenfeld)

Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Luiz Gonzaga Belluzzo


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