São Paulo, domingo, 09 de maio de 2004

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LUÍS NASSIF

O flautista de lata

Poucos personagens da música popular brasileira foram tão talentosos e pitorescos quanto o flautista capixaba Carlos Poyares, morto na semana passada em Brasília, aos 75 anos. Conheci-o no início de minha carreira jornalística, em uma reportagem que fui fazer em Guarapari sobre os velhinhos que andavam de gatinha na praia para se fortalecer com a radiatividade das areias monazíticas. Num restaurante na praia, morrendo de saudades dos meus botecos paulistas, comprei um LP dele com chapéu de palha e um cenário horroroso de estrelas pintadas ao fundo. Mas o som era de primeira.
Ao longo dos anos, Poyares foi se firmando cada vez mais como um dos grandes flautistas brasileiros. Seu LP "Flauta de Lata", pelo selo Eldorado, marcou época nos anos 70 ou 80. O lado pitoresco também era fantástico. Foi um dos grandes contadores de "causos" da nossa música.
Poyares tinha a sina na vida de ter sido contemporâneo de Altamiro Carrilho, o maior flautista da era do disco, ao lado de Pixinguinha. Ele tinha uma relação de amor e ódio com Altamiro. Gostava de se vangloriar de que músicos da Filarmônica de Berlim estiveram em São Paulo, ouviram Altamiro e ele. Em Altamiro, viram apenas a técnica; nele, a alma brasileira.
Durante algum tempo foi morar em Brasília, convidado pelo ministro da Agricultura Pratini de Moraes, acordeonista e amante do choro -aliás, quando encrenquei com ele, por conta da política de retenção do café, senti como se estivesse duelando com um irmão no choro. Poyares dizia que, quando chegava ao Palácio do Planalto, nem precisava mostrar a identidade para os seguranças. Chegava à sala do "Clóvis" (o ministro-chefe da Casa Civil Clóvis Carvalho), que lhe pedia para aguardar um pouco que o "Fernando" (FHC) estava atendendo um presidente europeu qualquer, mas que queria ouvi-lo tocar assim que a audiência terminasse. Ele, sentado na sala, de vez em quando abria a porta e aparecia a cabeça do "Fernando": "Poyares, güenta mais um pouco aí".
No primeiro "causo", descontando o "apenas" (já que Jean Pierre Rampal, tido como maior flautista da atualidade, sempre considerou Altamiro o melhor), o maestro Júlio Medaglia me confirmou a história dos alemães.
Quanto ao "Clóvis", o "causo" fazia meio sentido. Certa vez, em São Paulo, em um almoço comemorativo com centenas de pessoas, quando cheguei, fui chamado a uma mesa em que estavam Clóvis, Pedro Parente e Paulo César Ximenes, presidente do Banco do Brasil. Ficaram confabulando comigo por dez minutos. Os presentes pensaram que me contavam os segredos da República em público. Era coisa mais relevante: conversavam sobre maneiras de ajudar a reerguer o Clube do Choro de Brasília.
Mas confesso que nunca consegui imaginar nosso ex-presidente curtindo música popular. Lembrava-me do caso contado por um amigo, de FHC conduzindo presidentes de multinacionais pelos corredores do Alvorada, sentando-se ao piano para mostrar a música erudita que ele, FHC, compusera em homenagem à República. Era um dos seus dois lados de Pedro 1º.
A melhor de Poyares foi o dia em que foi convidado para tocar para a rainha Elizabeth 2ª. Eles estavam em um iate, a música embalou, ele sentiu nos olhos da rainha o prazer de ouvir a música brasileira. O orgulho nacional foi tão grande que ele foi se afastando, se afastando, até que bateu na murada do iate, se desequilibrou e caiu no mar. Para provar que músico brasileiro era profissional até debaixo d'água, continuou tocando sua flautinha e não parou nem quando foi recolhido pelos salva-vidas.
Era um sujeito amargo que nem o diabo, mas todo pimpão para seus 75 anos. Quando começava a tocar, ou a flauta de metal ou a flauta de lata, se transfigurava. O "durão" por fora era o lírico que sua música denunciava. E dava para perceber quando, lá em casa, depois de duas horas de críticas a Altamiro, passou a tocar as músicas de Altamiro, que era um Salieri, talentoso, bebendo cada nota de Mozart.


E-mail - Luisnassif@uol.com.br


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