São Paulo, domingo, 09 de junho de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Que tipo de guerra é essa?

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES A propaganda sobre as "realizações" dos "oito anos que mudaram o Brasil" sofreu um estrago considerável neste começo de mês, depois das "boas notícias" de maio -um superávit fiscal recorde, uma queda na atividade econômica menor do que a esperada, uma expectativa inflacionária aparentemente sob controle e, naturalmente, um aumento do desemprego. Vale dizer, supostamente um bom desempenho nos "fundamentos".
As autoridades monetárias decidiram não esperar setembro e soltaram uma bomba sobre o valor do estoque em mercado das Letras Financeiras do Tesouro (LFT). Estas representavam mais de 50% da dívida pública antes da intervenção e eram os títulos mais conservadores e de risco mínimo que resistiram a todas as crises financeiras desde 1987, com qualquer política monetária e cambial (*).
Quais foram as principais vítimas da intervenção do Banco Central? Os poupadores da classe média, que acreditaram na publicidade enganosa de que estavam aplicando em títulos de renda fixa. Entre os ganhadores estão alguns grandes bancos que operaram no mercado de "swaps" de câmbio, casados com LFTs, mas tinham-se visto livres delas ajudando a desvalorizá-las. Outros bancos, inclusive alguns estrangeiros, foram pegos no contrapé, já que, afinal, o mercado não é tão "transparente" assim e eles não esperavam a mudança abrupta nas regras do jogo.
O BC tentou primeiro reduzir a liquidez empoçada em um pequeno número de grandes bancos privados, que se recusavam a repor as suas carteiras de LFTs e começou uma "guerra" de pequena duração. Cedeu e acabou trocando pelo valor de face posições da dívida pública que venciam entre 2004 e 2006, encurtando prazos para o começo de 2003. Para essa troca, o "valor atual" dos títulos, com a taxa de desconto correspondente ao mercado futuro, não é levada em conta a desvalorização dos títulos da carteira do BC e o prejuízo final do Tesouro. Haja BC independente!
Os bancos privados que operam nos mercados financeiros globalizados e que tinham maior liquidez colocaram o BC contra a parede, começando imediatamente uma pressão sobre a depreciação do real. A venda especulativa de títulos da dívida externa "velha" (os "bradies" e C-bonds) no mercado secundário em Nova York, por sua vez, fez disparar o chamado risco Brasil. As dificuldades de rolagem das dívidas externas privadas corporativas, que vencem nos próximos meses, aumentaram muito além do aperto geral de crédito externo para os mal chamados "mercados emergentes".
Resumo do penúltimo capítulo da "novela", escrito a quatro mãos pelo ministro da Fazenda e pelo presidente do BC antes do feriado de Corpus Christi:
1. Os prazos da nossa gigantesca dívida pública que, a duras penas, tinham alcançado 36 meses em média, agora foram encurtados de forma abrupta. Os grandes bancos estão relutando em aceitar o presente da "megatroca" porque o encurtamento não diminui o risco dos papéis emitidos pelo atual governo no último ano.
2. As taxas de juros do BC nos próximos meses não terão nada a ver com a famosa "meta inflacionária", como nunca tiveram, aliás, mas tampouco servirão de "âncora" para a especulação no mercado aberto de títulos públicos e nos mercados cambiais. Daí para a frente, tudo passou a ser "flutuante".
3. Puxar o preço em dólar com especulação e antecipar a demanda futura para rolagem da dívida privada e pública externa é uma das armas que o "mercado" tem para ganhar do BC. Até agora, a guerra está sendo ganha de goleada por alguns segmentos do mercado líquidos em reais e em dólares.
Para concluir, tenho a obrigação moral de fazer algumas considerações que a minha longa experiência de observadora da política econômica deste país justifica:
A primeira é que o presidente do BC deveria ser mais discreto e não fazer terrorismo eleitoral para justificar as trapalhadas da sua própria política de financiamento da dívida pública e de "intervenção preventiva" no mercado. Imaginem se o presidente do Fed fizesse isso! Para os que em geral têm-se mantido discretos para não agravar a situação delicada do país, é difícil aturar a arrogância das autoridades econômicas que não reconhecem seus próprios erros ou suas práticas duvidosas.
A segunda é que já vi várias vezes as poupanças da classe média e do povão crescerem abaixo da inflação e do seu endividamento, dificultando-lhes a vida para enfrentar as prestações com bens de consumo durável ou com casa própria. Mas fazer uma desvalorização patrimonial abrupta dos poupadores de classe média (numa época de desemprego e de baixos salários) passou muito dos limites das crises financeiras anteriores, com exceção do confisco de Collor, que era considerado um enlouquecido.
A terceira é uma pergunta difícil de responder. Qual é mesmo o objetivo dessa "guerra" que o governo está promovendo contra parte do mercado e da oposição? Deixar o próximo governo encurralado e o país arruinado? Para quê? O dr. Malan tem pretensões a ser chamado de volta como aconteceu na Argentina com o dr. Cavallo? Alguns tucanos ilustres, prevendo a derrota eleitoral, pensam que sim! Em contrapartida Elio Gaspari cobra do dr. Armínio: o "curral deve ser negociado logo" (nesta Folha e no "Globo", 5/6/02). Não será seguramente com a prometida ajuda do FMI.
Diferentemente do que os leitores possam julgar, as decisões políticas sobre o rumo do país em conjunturas difíceis não devem caber aos "economistas brilhantes" (infelizmente conheço todos desde a década de 50 até agora). Devem caber aos políticos de bom senso, sobretudo os habituados a negociar do lado do povo, e não contra ele.


(*) O "inventor" das LFTs foi o dr. Luiz Carlos Mendonça de Barros na gestão Dilson Funaro. Dados os seus hábitos de "especulador contumaz", parece não dar a menor importância à sua única obra duradoura, limitando-se a atribuir ao PT e a seus economistas a nova crise financeira (nesta Folha, 7/6/02).

Maria da Conceição Tavares, 71, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ). Internet:
www.abordo.com.br/mctavares
E-mail - mctavares@cdsid.com.br


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