São Paulo, domingo, 09 de junho de 2002

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LUÍS NASSIF

Os que ficaram em Minas

A cidade cresceu, as esquinas mudaram, mas alguns botecos continuam incólumes. Aliás, a cultura brasileira, particularmente a música brasileira, passa pelos botecos. E em Belo Horizonte os botecos são particularmente acolhedores e têm história, como a Cantina do Lucas, no edifício Maleta, onde tudo começou.
Por ele passaram, décadas atrás, os primeiros integrantes do Clube da Esquina. Antes deles, as raízes foram plantadas pela bossa nova de Pacífico Mascarenhas, pelo Madrigal Renascentista, de Isaac Karabtchevsky e Maria Lúcia Godoy, pelo Ars Viva e pelo Coral de Ouro Preto. Ainda antes deles, pelas modinhas mineiras de autores anônimos ou meramente desconhecidos e pelos sons dos tempos, das congadas e da viola, da toada e das serestas.
No final dos anos 60, surgiu Milton Nascimento juntando o grupo. Misturaram a religiosidade mineira com o rock, a congada com a MPB e criaram a música mais aprimorada dos anos 70, superando a Tropicália em musicalidade e consistência.
Depois, dispersaram-se pela vida. Os da música instrumental espalharam-se pelo Brasil, como o sopro divino de Nivaldo Ornellas, o piano encantado de Wagner Tiso. Milton mandou-se para o Rio, para se tornar referência mundial. Em Belo Horizonte ficou a maior parte do grupo, Tavinho Moura e seu som rural, os irmãos Lô e Márcio Borges, Beto Guedes e Toninho Horta, as letras de Fernando Brant.
Hoje em dia, floresce nos becos de Belo Horizonte uma musicalidade intensa, rica como poucas no Brasil. Nesses tempos de intensas transformações, dos anos 80 e 90, Minas está onde sempre esteve. Gerou o melhor rock brasileiro, com o Skank, é verdade, aprimorou-se nos corais, revolucionou a dança, com O Corpo, tem grupos excelentes de choro, como o Flor do Abacate. Criou uma escola de violão personalíssima, a partir dos sons de Chiquito Braga, e seus seguidores, Juarez Moreira e Toninho Horta, que, com Yuri Popoff e André Dequech, acabaram constituindo o grupo "Vera Cruz".
Mas foi ouvindo "Dois Rios", de Tavinho, Fernando Brant e Sérgio Santos, que a alma do Clube da Esquina e seus descendentes inundou minha noite paulistana. Recebi a música pela internet, e durante dois dias meu computador não parou de tocar as três versões, a instrumental com Tavinho, a cantada com ele e Sérgio Santos e a sinfônica, gravada em Belo Horizonte. "Primeiro o som interior / dentro da terra o rio quer nascer....", um clássico comovente celebrando o encontro do rio das Velhas com o São Francisco.
É nessa Minas de "Dois Rios" e de seus três autores que está sendo tecida uma das grandes obras da música brasileira contemporânea. Tavinho e Brant compuseram uma sinfonia mineira, uma homenagem ao rei do congado, com uma coletânea de músicas arranjada por Nelson Ayres e Nivaldo Ornellas, na qual o ponto máximo é "Dois Rios". E Sérgio Santos, o sul-mineiro de Varginha, em parceria com Paulo César Pinheiros, lançou um CD, "Áfrico", que é uma obra-prima contemporânea, algo que, no futuro, poderá ser equiparado aos sambas afro de Baden e Vinicius.
Em ambos os casos, Minas penetra no culto do mistério. No primeiro, de Tavinho e Brant, tentando decifrar as raízes mineiras; no segundo, uma celebração da cultura negra, em que Paulo César foi beber em Gilberto Freyre, e Sérgio, nas lembranças do tempo.
As músicas passam por todas as instâncias de influência negra, do batuque à religiosidade, da sensualidade à comida. É de uma harmonia complexa, da riqueza rítmica que o interior de Minas gerou e Milton aprimorou.
Sérgio Santos é o que de mais sofisticado a música brasileira tem no momento, ao lado de Guinga e outros harmonizadores. Sua linha de composição lembra a do samba-canção sofisticado que precedeu a bossa nova. A voz é magistral, assim como sua batida e sua harmonia ao violão.
Essa Belo Horizonte de Pacífico a Sérgio Santos, do bar do Bolão, na padre Eustáquio, resistiu ao poder de atração do Rio e de São Paulo. Em breve, seus sons serão reconhecidos em todo o país, como o que de melhor vem sendo criado na música brasileira contemporânea.
E-mail - lnassif@uol.com.br


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