São Paulo, terça-feira, 09 de julho de 2002

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LUÍS NASSIF

Mídia, denuncismo e democracia

Fernando Collor de Mello tinha duas características perigosas. Uma, francamente negativa, a falta de limite com os esquemas de arrecadação política. A segunda, muito mais perigosa, o voluntarismo extremado. O voluntarismo ajudou a remover alguns obstáculos à modernização, mas poderia ter gerado um ditador não fosse a primeira característica e a credibilidade da mídia, que permitiu agir como poder moderador, ajudando a alijá-lo do poder.
Doze anos depois, corre-se o risco de um presidente tão voluntarista quanto Collor, sem sua fragilidade moral, e com dois dos principais fatores de moderação -mídia e Ministério Público- desmoralizados pelo abuso do denuncismo por parte dos seus.
Tem-se hoje, em diversos Estados, alguns dos principais denunciados pela mídia crescendo nas pesquisas, demonstrando a perda de eficácia das denúncias. Mais que isso, o denuncismo misturou alhos com bugalhos, honestos com ladrões, faltas leves com crimes, condenou inocentes e alforriou suspeitos óbvios pela incompetência de recolher provas, afetou a imagem das instituições e dos governantes, transformou rumores em denúncias, desmoralizou o processo jurídico e as alianças políticas. O leitor e telespectador estão completamente desorientados.
Se alguém voluntarista como Collor emergir das eleições, quem vai segurá-lo? A "Carta Aberta a Luiz Ignácio Lula da Silva", de autoria de Eduardo Jorge, merece uma publicação na íntegra e uma análise mais aprofundada sobre esse processo. Quando o próprio PT estimulou a aventura irresponsável da CPI da Corrupção -uma CPI para apurar mais de 20 denúncias genéricas- alertei que esse processo se voltaria contra o próprio partido, porque o monstro que nasceu desse casamento espúrio entre cobertura leviana e procuradores irresponsáveis ganharia vida própria, até se desmoralizar por si.
No momento da catarse, esses alertas são dificultados por patrulhamento de toda espécie. Cria-se a catarse, bom senso é confundido com adesismo, ponderação com rendição, e tenta-se calar os alertas com patrulhamento. O patrulheiro se sente fortalecido pelo apoio dos linchadores, goza o momento de glória, é autor e intérprete da indignação popular. Depois, quando a imagem da imprensa se esboroa, a autoria torna-se difusa. Os divulgadores de dossiês falsos, os estimuladores do denuncismo se retraem, mas aí o mal está feito. E afeta a imprensa como um todo.
O mesmo ocorre com o Ministério Público. A cada dia que passa, mais difícil se torna a vida do procurador que se dedica com seriedade ao seu trabalho, porque sua palavra vai perdendo força, e sua legitimidade vai sendo questionada devido aos abusos cometidos por meia dúzia deles.
Quando um procurador comete uma leviandade, denuncia sem provas ou, pior, sem crimes, afeta o trabalho de todos os seus pares comprometidos com a seriedade e com a discrição e o próprio Poder Judiciário que, tendo de debruçar sobre provas, não acolhe as denúncias propaladas.
A denúncia foi um exercício risonho e franco nos últimos oito anos, devido ao espírito democrático de Fernando Henrique Cardoso. Pode-se e deve-se criticá-lo pelos erros de política econômica, jamais pelo autoritarismo. Com ele, o Executivo se manteve inteiro por conta de alianças políticas, não da coerção.
Agora que se vai chegando ao final do governo, e há o risco de um candidato voluntarista no poder, paira no ar a incômoda sensação de que não se tem uma democracia consolidada, as ferramentas fundamentais de controle do poder -como a mídia e o MP- estão debilitadas e terão que ser reforçadas, para o bem da democracia.
Só que esse reforço depende exclusivamente da retomada da responsabilidade, do critério, porque sem uma mídia forte, dependendo de quem entrar, será difícil manter a estabilidade democrática.

E-mail - lnassif@uol.com.br



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