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São Paulo, domingo, 09 de novembro de 2003

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NÓ COMERCIAL

Para Jeffrey Schott, do Instituto de Economia Internacional, Brasil exagerou na tática adotada em Cancún

Alca depende de Miami, afirma economista

Laura Rauch - 10.set.03/Associated Press
Manifestantes tentam furar bloqueio policial que protegia o local das reuniões da 5ª Conferência Ministerial da OMC, em Cancún


ÉRICA FRAGA
DA REPORTAGEM LOCAL

As chances de que a Alca (Área de Livre Comércio das Américas) vire uma realidade no futuro dependem, totalmente, da reunião ministerial que começará em oito dias, em Miami, e das conversas fechadas paralelas-iniciadas anteontem- entre embaixadores do Brasil e dos Estados Unidos.
A opinião é de Jeffrey Schott, economista sênior do prestigiado Instituto de Economia Internacional (IIE), em Washington, que já foi membro do time de negociadores dos EUA em rodadas comerciais.
"Se as conversas dos próximos dias fracassarem, as perspectivas para a Alca no curto prazo são bem ruins", diz Schott, que é um dos autores do livro "O Brasil e os Estados Unidos num Mundo em Mutação", patrocinado pela embaixada brasileira em Washington, que será lançado em breve.
Um dos maiores especialistas em comércio exterior da atualidade, Schott escreveu recentemente na revista britânica "The Economist" um veemente texto falando do fracasso da reunião da OMC (Organização Mundial do Comércio) em Cancún, no México, e das sérias ameaças ao sistema multilateral.
A seguir, a entrevista que Schott concedeu à Folha, por telefone.
 
Folha - O senhor quis dizer em seu artigo que os países em desenvolvimento foram os principais responsáveis para o fracasso das negociações em Cancún?
Jeffrey Schott -
Não. Disse que a agricultura causou o fracasso. Há diferentes grupos de países em desenvolvimento com diferentes prioridades e interesses na rodada de Doha. O problema em Cancún foi que alguns países quiseram por razões táticas usar sua ameaça de bloquear o consenso a fim de evitar a negociação de mudanças em suas próprias políticas.

Folha - Que países fizeram isso? E como foi a postura do Brasil?
Schott -
Muitos, muitos países em desenvolvimento. Mas não necessariamente o Brasil. Minha visão do desempenho brasileiro é que os brasileiros exageraram em termos de táticas e, depois, encontraram muito pouco tempo de sobra para, realmente, negociar. Sua intenção era negociar mais. Não acho que os brasileiros não quisessem negociar, ao contrário, mas suas táticas contribuíram, ao lado de ações tomadas por outros países, para um clima que não foi propício às negociações.

Folha - A tática foi errada?
Schott -
Não teve nada de errado com a formação do lobby para forçar os Estados Unidos e a Europa a se comprometerem com uma reforma mais profunda da agricultura. O problema com esse lobby foi que, para ganhar peso suficiente, eles incluíram países que não tinham o menor interesse em negociar mudanças em suas próprias práticas.
Esse foi o problema básico que desagradou tanto, no meu entender, ao embaixador Zoellick (Robert Zoellick, responsável pelas negociações comerciais externas dos Estados Unidos).

Folha - Que países fizeram isso?
Schott -
No G22 (grupo de países em desenvolvimento que se uniram em Cancún), por exemplo, a Índia tinha uma posição oposta à do Brasil em termos de colocar suas próprias barreiras na mesa de negociações. O Brasil estava disposto a negociar, mas ao liderar esse lobby desesperado, seu poder, em termos do que poderia oferecer, ficou limitado.

Folha - Mas eles tinham outra alternativa?
Schott -
O problema é que se eles não incluíssem todos esses países, o lobby do G22 teria sido menos importante. Foi uma estratégia que, desde o início, teve sérias limitações.

Folha - Não formar o grupo teria sido mais eficaz?
Schott -
Há um grande debate sobre isso. Alguns argumentam que eles tinham de representar uma voz muito clara de oposição à proposta de compromisso em relação à agricultura dos Estados Unidos e da União Européia que era, claramente, insuficiente. E o lobby do G22 marcou esse ponto muito claramente.
Sem isso, não é claro se as futuras negociações poderiam prosseguir. O problema é que, ao exagerar em Cancún, os negociadores criaram muita má vontade, não apenas entre seus amigos na mesa de negociação, mas também entre negociadores de outros países. E isso pode complicar, como disse em meu artigo, a perseverança nas reformas no futuro.
Por isso, argumentei que o colapso de Cancún tornou a conclusão da rodada de Doha ainda mais difícil do que já vinha sendo antes desse encontro .
Não foi apenas por causa da ação do G22. Mas foi fruto da combinação de tudo isso.
Por isso, escrevi esse artigo para convencer os negociadores dos países sobre o que eles perderão se não retomarem as conversas sobre as reformas necessárias.

Folha - Na sua opinião, qual deve ser a estratégia dos países que formaram o G22 de agora em diante?
Schott -
Acho que esses países têm de continuar brigando por cortes substanciais nas proteções agrícolas. Mas reconhecer que eles terão de contribuir também para as reformas.
Honestamente, dos países menos desenvolvidos a OMC, praticamente, não exige nada. O que é importante, portanto, é a postura dos países em desenvolvimento de renda média. Eles precisam contribuir reformando suas próprias práticas comerciais de forma consistente com suas necessidades financeiras, comerciais e de desenvolvimento. Fazendo isso, não apenas criariam um ambiente mais equilibrado para as negociações, como também para seu desenvolvimento econômico.

Folha - E o senhor vê disposição para isso?
Schott -
Isso já é um fato no debate político interno no Brasil. Eu entendo que há um debate ativo dentro da administração sobre isso. Na maioria dos outros países em desenvolvimento, também há esse reconhecimento de que as coisas saíram do controle. Na reunião dos países asiáticos que formam a APEC (Cooperação Econômica da Ásia e do Pacífico) há duas semanas em Bangcoc (na Tailândia), os países da região pediram a volta das conversas de Doha baseadas no texto de Derbez (Luis Ernesto Derbez, ministro das relações exteriores do México, que resumiu os principais pontos de Cancún).
Isso incluiu Malásia, Japão, Coréia do Sul e Indonésia que não eram os mais abertos à idéia de se comprometer em reformar suas próprias barreiras em Cancún. Pelo menos, é um passo quando ainda precisamos de uma decisão de países como Índia e Egito.

Folha - Os EUA estariam dispostos a dar o primeiro passo agora, como o senhor disse que seria necessário em seu artigo?
Schott -
Bem, eu estou esperançoso. O presidente Bush se comprometeu com isso em Bangcoc há duas semanas. E eu ainda não recebi uma resposta direta de Bob Zoellick sobre meu artigo, mas acredito que a terei ainda nesta semana. Espero que ele não vá me criticar muito (risos).
Baseado no ambiente político aqui em Washington, penso que ainda há apoio desde que ocorra uma boa negociação relativa a acesso a mercados. E, na rodada de Doha, isso significa fazer muito mais a respeito da agricultura.
Como tenho dito a líderes brasileiros quando eles vêm a Washington e passam no meu instituto, seja Palocci (Antônio Palocci Filho, ministro da Fazenda), Furlan (Luis Fernando Furlan, ministro do Desenvolvimento) ou outros, Estados Unidos e Brasil têm muitos interesses comuns em alcançar um grande corte no protecionismo agrícola nessa rodada.
Precisamos estar trabalhando juntos para atingir essa meta. E, apenas se atingirmos essa meta, conseguiremos fazer as outras mudanças que o Brasil quer para ganhar melhor acesso aos mercados norte-americano e europeu.
Se não trabalharmos juntos, os resultados são muito claros: é o que ocorreu em Cancún.
Espero que as conversas bilaterais que começaram na reunião ministerial há algumas semanas tenham frutos nos encontros dos próximos dias em Miami.

Folha - O que o senhor diria sobre as perspectivas para a retomada das negociações?
Schott -
Bem, neste momento, elas são incertas. Claramente, tanto os Estados Unidos como o Brasil estão se esforçando bastante para trabalhar juntos. Mas, se esses esforços vão frutificar, ainda vamos saber.

Folha - Como o senhor vê a relação específica entre Brasil e Estados Unidos seja na Alca...
Schott -
Bem, eu escrevi um artigo sobre isso que, na verdade, será publicado em português num livro que o embaixador Rubens Barbosa (nos EUA) está editando. É um livro sobre as relações entre Brasil e Estados Unidos que deverá ser publicado logo.
Há boas razões para vermos uma melhora nas relações entre Brasil e Estados Unidos ao longo do tempo. Ambos têm a ganhar ao investir e negociar mais entre eles. Então, as oportunidades estão aí. A pergunta é: há a vontade política e os meios políticos para se aproveitar essa oportunidade?

Folha - E o que o senhor diria?
Schott -
Bem, mais cedo ou mais tarde, eles existirão. Mas eu realmente não posso imaginar o que vai acontecer na próxima semana. Eu estou encorajando os dois lados a trabalhar juntos.

Folha - A reunião de Miami é, então, decisiva?
Schott -
Sim, essa reunião é um passo muito importante para a Alca. Se as conversas forem bem-sucedidas, aumentam as chances de sucesso das negociações da Alca. Se as conversas fracassarem, as perspectivas para a Alca no curto prazo são muito ruins.

Folha - Quais são as implicações da proliferação de acordos bilaterais para o regime multilateral?
Schott -
Vou falar sobre isso na OMC (Organização Mundial do Comércio) na próxima semana. Sob circunstâncias normais, há tanto prós como contras para o sistema multilateral. Mas o balanço geral mostra que os acordos comerciais regionais têm sido, geralmente, benéficos.
O problema surgirá se houver um colapso no processo de negociação multilateral. Muitas novas incertezas aparecerão e, então, os efeitos negativos podem superar os efeitos positivos.
Então, o que me preocupa agora é que, se as negociações da OMC "vagarem" por muito tempo, então, haverá fortes pressões para que sejam concluídas as negociações bilaterais que talvez sejam maléficas à OMC. Porque elas aumentariam a discriminação e abririam espaço para novas barreiras às reformas comerciais.
Portanto, essa é umas razões chaves pelas quais penso ser fundamental que sejam removidas as incertezas a respeito do regime multilateral para que as negociações sejam retomadas.



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