São Paulo, domingo, 10 de janeiro de 1999

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ARTIGO
Prevenir novas crises

GEORGE SOROS
especial para a Folha

Será que em 1999 os assuntos financeiros vão seguir adiante segundo o padrão de sempre? A dramática volatilidade que acometeu os mercados financeiros há pouco tempo não passa de uma memória longínqua. Os sofrimentos dos russos e indonésios parecem distantes. Mas o sistema financeiro global conserva falhas fundamentais. A não ser que esses problemas sejam atacados e que assimilemos as lições do ano passado, o sistema corre o risco de desabar.
Os "booms" e os "busts" (quedas) são endêmicos nos mercados financeiros. Em lugar de flutuar como pêndulos, os mercados às vezes se movem como bolas de demolição, derrubando uma economia após outra. Não é possível evitar essas oscilações completamente, mas é preciso exercer controle sobre elas. As instituições financeiras internacionais, notadamente o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, foram projetadas para um mundo isento de fluxos de capital em grande escala. Na crise recente o FMI deixou claro que, mais do que solução para o problema, é parte integrante dele.
A missão primordial do FMI é preservar o sistema financeiro internacional. Sua tarefa consiste em assegurar que o país devedor consiga cumprir com seus compromissos internacionais, se não de imediato, então dentro de um futuro previsível. As condições que ele impõe ao país devedor incluem taxas de juros punitivamente altas, que atendem ao objetivo duplo de estabilizar as taxas de câmbio e gerar um superávit comercial, ao provocar uma recessão. Ambas consequências beneficiam indiretamente aos credores, na medida em que facilitam o pagamento das dívidas.
Esse método de operação levou ao surgimento de algo que hoje já é reconhecido como sendo um perigo moral. Em caso de problemas, os credores podem contar com o socorro do FMI. Isso teria encorajado o surgimento de práticas descuidadas na área da concessão de empréstimos. Na realidade, o perigo moral pode ser melhor descrito como sendo uma assimetria no tratamento de concessores e contratantes de empréstimos.
Existe outra assimetria no modo em que o FMI opera atualmente. Ele só pode intervir em momentos de crise; não possui autoridade para prevenir o surgimento de crises. No entanto, a experiência mostra que a única maneira de prevenir os "busts" é moderar os "booms" que os antecedem. Em conjunto, essas duas assimetrias explicam o motivo pelo qual o FMI passou a ser parte do problema. Na crise mais recente o FMI impôs a adoção de taxas de juros punitivas, e os países atingidos foram mergulhados em recessões profundas. Mas quando a crise ameaçou os EUA, o Federal Reserve reduziu as taxas de juros, e a economia norte-americana escapou ilesa.
Hoje o FMI é alvo de fortes críticas. Alguns setores pedem sua extinção. Outros querem paralisá-lo ou restringir sua ação, impondo condições de todo tipo à sua atuação. A meu ver, esses ataques são equivocados. Se os mercados financeiros globais são inerentemente instáveis, não precisamos que as instituições existentes sejam desmontadas -precisamos de um quadro regulatório mais forte. Falando em termos específicos, precisamos converter o FMI em algo que se assemelhe a um banco central internacional.
O que tenho em mente não é uma instituição como o Federal Reserve ou o Banco Central Europeu. Estou falando em dotar o FMI de poderes para atuar como concessor de empréstimos de último recurso, com relação a um grupo selecionado de países ansiosos por obter acesso a tal proteção. Os países em questão teriam que adotar políticas macroeconômicas corretas: possuir um sistema bancário saudável, sujeito a supervisão adequada; fornecer informações adequadas tanto ao FMI quanto aos mercados; manter taxas de câmbio flexíveis, com medidas apropriadas para o controle de fluxos excessivos de capital; contar com leis apropriadas de administração e falência; respeitar certos direitos humanos básicos e obedecer às leis. Em troca, o FMI atuaria como agente concessor de empréstimos de último recurso e proveria os países de fluxos adequados de capital, quando os mercados financeiros não se dispusessem a fazê-lo.
Os países que não conseguem ou não concordam em satisfazer a essas condições continuariam a ter acesso ao FMI sob condições semelhantes àquelas que existem hoje, com uma diferença importante: em épocas de crise, o FMI imporia condições não apenas ao país em questão, mas também aos credores. Ao acautelar os candidatos a credores, o FMI poderia prevenir o surgimento de fluxos excessivos de capital. Se, mesmo assim, fosse preciso impor uma moratória ou um esquema de conversão obrigatória de dívida em títulos, o sistema financeiro internacional não seria perturbado, porque tratar-se-ia de um caso isolado. Seria eliminada a ameaça de contágio, inerente ao sistema hoje vigente.
O fato de se capacitar o FMI a atuar como agente concessor de empréstimos de último recurso transformaria a missão do FMI e sua maneira de operar. Acabaria com o desequilíbrio atual, favorável aos credores.
O novo sistema também acabaria com o desequilíbrio entre prevenção e cura. A ênfase maior seria dada, corretamente, à prevenção. Não seria possível eliminar completamente os "booms" e "busts", mas o FMI, em seu novo formato, também atuaria como uma espécie de banco central internacional, regulamentando o ambiente em que ocorrem os fluxos internacionais de capital, para prevenir a necessidade de intervir como agente concessor de empréstimos de último recurso.
Não se trata de um ideal utópico, mas de uma idéia que pode e deve ser implementada agora mesmo. Ela está implícita num comunicado recente do G7 que propôs a adoção de ações preventivas e de um fundo de contingência, e também nos discursos de Bill Clinton, presidente dos EUA, Gordon Brown, ministro das Finanças do Reino Unido, e outros estadistas.
Não vou afirmar que seria fácil determinar as regras de operação de um FMI reconstituído. Um órgão internacional regulador do fluxo de crédito e dinheiro teria que levar em conta não apenas os países periféricos, mas também aqueles situados no centro do sistema capitalista global. Seria incorreto o Federal Reserve norte-americano ou o Banco Central Europeu permitirem que um órgão internacional infringisse sua autonomia, mas ambas as instituições estariam representadas no conselho diretor do FMI reconstituído, e, nesse contexto, estariam melhor posicionados para coordenar suas responsabilidades globais.
A maioria das crises financeiras globais foi precipitada por altas nas taxas de juros. Foi isso que aconteceu em 1929, em 1982 e, novamente, em 1992, quando a reunificação alemã acabou com o Mecanismo de Câmbio Europeu. Não foi o que aconteceu em 1997-98, mas pode muito bem vir a ocorrer na próxima crise. A capacidade de injetar ou restringir a liquidez não apenas no centro, mas também na periferia, abriria opções políticas hoje inexistentes. Algo que se assemelhasse a um banco central internacional poderia atuar como pedra angular da arquitetura financeira em torno da qual poderia ser organizada uma nova conferência de Bretton Woods.
Nos EUA, o tema está sendo estudado por uma força-tarefa do Conselho de Relações Exteriores e por outros grupos. Iniciativas semelhantes deveriam ser tomadas na Europa. Ainda mais importante, porém, é que a questão seja tratada pelos países -no Sudeste Asiático, na América Latina e no resto do mundo- que poderiam beneficiar-se da existência de uma instância concessora de empréstimos de último recurso. Afinal, se a idéia é que a nova arquitetura venha corrigir a assimetria entre o centro e a periferia, os países da periferia devem ter voz ativa em seu desenho.


Tradução de Clara Allain

George Soros é presidente do Fundo Soros e do Instituto Sociedade Aberta e autor de "The Crisis of Global Capitalism" (A crise do capitalismo global).



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