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ARTIGO
Prevenir novas crises
GEORGE SOROS
especial para a Folha
Será que em 1999 os assuntos financeiros vão seguir adiante segundo o padrão de sempre? A
dramática volatilidade que acometeu os mercados financeiros
há pouco tempo não passa de
uma memória longínqua. Os sofrimentos dos russos e indonésios
parecem distantes. Mas o sistema
financeiro global conserva falhas
fundamentais. A não ser que esses problemas sejam atacados e
que assimilemos as lições do ano
passado, o sistema corre o risco
de desabar.
Os "booms" e os "busts" (quedas) são endêmicos nos mercados financeiros. Em lugar de flutuar como pêndulos, os mercados
às vezes se movem como bolas de
demolição, derrubando uma economia após outra. Não é possível
evitar essas oscilações completamente, mas é preciso exercer controle sobre elas. As instituições financeiras internacionais, notadamente o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, foram projetadas para um mundo
isento de fluxos de capital em
grande escala. Na crise recente o
FMI deixou claro que, mais do
que solução para o problema, é
parte integrante dele.
A missão primordial do FMI é
preservar o sistema financeiro internacional. Sua tarefa consiste
em assegurar que o país devedor
consiga cumprir com seus compromissos internacionais, se não
de imediato, então dentro de um
futuro previsível. As condições
que ele impõe ao país devedor incluem taxas de juros punitivamente altas, que atendem ao objetivo duplo de estabilizar as taxas
de câmbio e gerar um superávit
comercial, ao provocar uma recessão. Ambas consequências beneficiam indiretamente aos credores, na medida em que facilitam o pagamento das dívidas.
Esse método de operação levou
ao surgimento de algo que hoje já
é reconhecido como sendo um
perigo moral. Em caso de problemas, os credores podem contar
com o socorro do FMI. Isso teria
encorajado o surgimento de práticas descuidadas na área da concessão de empréstimos. Na realidade, o perigo moral pode ser
melhor descrito como sendo uma
assimetria no tratamento de concessores e contratantes de empréstimos.
Existe outra assimetria no modo em que o FMI opera atualmente. Ele só pode intervir em momentos de crise; não possui autoridade para prevenir o surgimento de crises. No entanto, a experiência mostra que a única maneira de prevenir os "busts" é
moderar os "booms" que os antecedem. Em conjunto, essas duas
assimetrias explicam o motivo
pelo qual o FMI passou a ser parte
do problema. Na crise mais recente o FMI impôs a adoção de taxas de juros punitivas, e os países
atingidos foram mergulhados em
recessões profundas. Mas quando a crise ameaçou os EUA, o Federal Reserve reduziu as taxas de
juros, e a economia norte-americana escapou ilesa.
Hoje o FMI é alvo de fortes críticas. Alguns setores pedem sua extinção. Outros querem paralisá-lo ou restringir sua ação, impondo condições de todo tipo à sua
atuação. A meu ver, esses ataques
são equivocados. Se os mercados
financeiros globais são inerentemente instáveis, não precisamos
que as instituições existentes sejam desmontadas -precisamos
de um quadro regulatório mais
forte. Falando em termos específicos, precisamos converter o
FMI em algo que se assemelhe a
um banco central internacional.
O que tenho em mente não é
uma instituição como o Federal
Reserve ou o Banco Central Europeu. Estou falando em dotar o
FMI de poderes para atuar como
concessor de empréstimos de último recurso, com relação a um
grupo selecionado de países ansiosos por obter acesso a tal proteção. Os países em questão teriam que adotar políticas macroeconômicas corretas: possuir
um sistema bancário saudável,
sujeito a supervisão adequada;
fornecer informações adequadas
tanto ao FMI quanto aos mercados; manter taxas de câmbio flexíveis, com medidas apropriadas
para o controle de fluxos excessivos de capital; contar com leis
apropriadas de administração e
falência; respeitar certos direitos
humanos básicos e obedecer às
leis. Em troca, o FMI atuaria como agente concessor de empréstimos de último recurso e proveria os países de fluxos adequados
de capital, quando os mercados
financeiros não se dispusessem a
fazê-lo.
Os países que não conseguem
ou não concordam em satisfazer a
essas condições continuariam a
ter acesso ao FMI sob condições
semelhantes àquelas que existem
hoje, com uma diferença importante: em épocas de crise, o FMI
imporia condições não apenas ao
país em questão, mas também aos
credores. Ao acautelar os candidatos a credores, o FMI poderia
prevenir o surgimento de fluxos
excessivos de capital. Se, mesmo
assim, fosse preciso impor uma
moratória ou um esquema de
conversão obrigatória de dívida
em títulos, o sistema financeiro
internacional não seria perturbado, porque tratar-se-ia de um caso isolado. Seria eliminada a
ameaça de contágio, inerente ao
sistema hoje vigente.
O fato de se capacitar o FMI a
atuar como agente concessor de
empréstimos de último recurso
transformaria a missão do FMI e
sua maneira de operar. Acabaria
com o desequilíbrio atual, favorável aos credores.
O novo sistema também acabaria com o desequilíbrio entre prevenção e cura. A ênfase maior seria dada, corretamente, à prevenção. Não seria possível eliminar
completamente os "booms" e
"busts", mas o FMI, em seu novo
formato, também atuaria como
uma espécie de banco central internacional, regulamentando o
ambiente em que ocorrem os fluxos internacionais de capital, para prevenir a necessidade de intervir como agente concessor de
empréstimos de último recurso.
Não se trata de um ideal utópico, mas de uma idéia que pode e
deve ser implementada agora
mesmo. Ela está implícita num
comunicado recente do G7 que
propôs a adoção de ações preventivas e de um fundo de contingência, e também nos discursos de
Bill Clinton, presidente dos EUA,
Gordon Brown, ministro das Finanças do Reino Unido, e outros
estadistas.
Não vou afirmar que seria fácil
determinar as regras de operação
de um FMI reconstituído. Um órgão internacional regulador do
fluxo de crédito e dinheiro teria
que levar em conta não apenas os
países periféricos, mas também
aqueles situados no centro do sistema capitalista global. Seria incorreto o Federal Reserve norte-americano ou o Banco Central
Europeu permitirem que um órgão internacional infringisse sua
autonomia, mas ambas as instituições estariam representadas
no conselho diretor do FMI reconstituído, e, nesse contexto, estariam melhor posicionados para
coordenar suas responsabilidades globais.
A maioria das crises financeiras
globais foi precipitada por altas
nas taxas de juros. Foi isso que
aconteceu em 1929, em 1982 e, novamente, em 1992, quando a reunificação alemã acabou com o
Mecanismo de Câmbio Europeu.
Não foi o que aconteceu em 1997-98, mas pode muito bem vir a
ocorrer na próxima crise. A capacidade de injetar ou restringir a liquidez não apenas no centro, mas
também na periferia, abriria opções políticas hoje inexistentes.
Algo que se assemelhasse a um
banco central internacional poderia atuar como pedra angular
da arquitetura financeira em torno da qual poderia ser organizada
uma nova conferência de Bretton
Woods.
Nos EUA, o tema está sendo estudado por uma força-tarefa do
Conselho de Relações Exteriores
e por outros grupos. Iniciativas
semelhantes deveriam ser tomadas na Europa. Ainda mais importante, porém, é que a questão
seja tratada pelos países -no Sudeste Asiático, na América Latina
e no resto do mundo- que poderiam beneficiar-se da existência
de uma instância concessora de
empréstimos de último recurso.
Afinal, se a idéia é que a nova arquitetura venha corrigir a assimetria entre o centro e a periferia, os
países da periferia devem ter voz
ativa em seu desenho.
Tradução de
Clara Allain
George Soros é presidente do Fundo Soros e
do Instituto Sociedade Aberta e autor de "The
Crisis of Global Capitalism" (A crise do capitalismo global).
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