São Paulo, quarta-feira, 10 de março de 2004

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ARTIGO

Fundo não está à altura de sua missão original

MARTIN WOLF
DO "FINANCIAL TIMES"

Horst köhler , que acaba de renunciar como diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional, disse que aceitou a candidatura ao cargo de presidente da Alemanha "com uma risada e lágrimas em um olho". Muitos vão compartilhar esses sentimentos. A forma da saída de Köhler foi tão absurda e ultrajante quanto sua chegada.
Em 2000, o chanceler alemão Gerhard Schröder realizou uma campanha feroz para colocar um compatriota na chefia do FMI. Derrotado por um veto norte-americano em sua tentativa de indicar Caio Koch-Weser, secretário de Estado no Ministério da Economia, Schröder voltou-se para Köhler, então chefe do Banco Europeu para Reconstrução e Desenvolvimento. Os adversários políticos do chanceler transformaram essa vitória em derrota ao indicar Köhler para o cargo cerimonial de presidente. A Alemanha foi tão insensível na insistência para que um alemão chefiasse o FMI quanto é paroquial hoje em sua decisão de retirá-lo.
Köhler fez o melhor que pôde como diretor-gerente. Mas todo mundo sabia que ele não era a primeira opção de ninguém. Seu sucessor precisa da autoridade que só pode vir de um processo de seleção mais aberto e transparente.
Mas certamente o motivo mais importante para escolher o melhor líder possível é que ele (ou ela) tem muito a fazer.
Existem, no meu entender, três prioridades.
Primeiro, o FMI precisa reconsiderar a extensão em que se envolveu em empréstimos de longo prazo para os países mais pobres. Enquanto tem um papel significativo como conselheiro em política macroeconômica, não estou convencido de que é adequado o FMI se envolver pesadamente em empréstimos para aliviar a pobreza.
Segundo, o próximo diretor-gerente deve administrar as conseqüências das enormes exposições acumuladas sob Köhler. No final de 2003, apenas três países (Brasil, Turquia e Argentina) respondiam por 72% de todo o crédito geral a pagar. Os valores totais vencidos para esses países são hoje de US$ 67,6 bilhões em Direitos Especiais de Saque, dos quais US$ 28,1 bilhões para o Brasil, US$ 23,7 bilhões para a Turquia e US$ 15,8 bilhões para a Argentina.
Os valores pendentes para esses mutuários são 45% dos recursos do FMI. Köhler apostou a fazenda. Ao fazê-lo, também cometeu grandes erros, notadamente nos empréstimos para a Argentina em 2001. Acima de tudo, o Fundo não tem fundos para empréstimos nessa escala. Ficou à mercê de seus maiores devedores. A Argentina foi brilhante ao explorar seu conhecimento da vulnerabilidade do FMI.
Finalmente, e mais importante, o Fundo precisa demonstrar uma liderança convincente sobre a questão que ainda é sua razão de ser: o ajuste da balança de pagamentos global.
No momento esse ajuste está funcionando, ou melhor, não funcionando, da maneira mais peculiar: a economia mundial só atinge um razoável equilíbrio macroeconômico fazendo os EUA aumentarem cada vez mais seu déficit de conta corrente. Isso parece perverso em si e, com toda probabilidade, é insustentável.
Podem-se encontrar duas explicações para esse fenômeno, ambas na competência do FMI: a fraqueza crônica da demanda na zona euro e no Japão; e o fracasso dos mercados em fornecer um fluxo de capital estável para os emergentes. O primeiro desses fracassos pode ser enfrentado apenas tornando mais eficaz a vigilância do FMI. O segundo reflete algo ainda mais profundo: a determinação das economias emergentes a evitar a vulnerabilidade aos mercados de capital que levou a dolorosas crises financeiras.
Essas crises projetam uma longa sombra. Muitas economias emergentes decidiram evitar os influxos de capital substanciais quase a todo custo. Elas estão especialmente decididas a evitar o endividamento líquido no curto prazo. Assim, tentam manter taxas de câmbio competitivas, administrar o superávit de conta corrente e reciclar fluxos de capital para reservas cambiais. A conseqüência direta é que elas também acumularam reservas cambiais maciças. Entre o início de 1998 e novembro de 2003, os países asiáticos aumentaram suas reservas em moeda estrangeira em US$ 1,128 trilhão, enquanto o aumento no mundo foi de US$ 1,344 trilhão. Os recursos utilizáveis do FMI são de apenas US$ 149 bilhões.
Esse fato tem duas conseqüências. A primeira é que investir em reservas nessa escala, em vez de contar com um mecanismo para compartilhar reservas, como se pretendia com a criação do FMI, é intrinsecamente um desperdício. A mais importante conseqüência é que enquanto tantos países continuarem decididos a minimizar o endividamento, o equilíbrio global provavelmente imporá um enorme déficit de conta corrente aos EUA e um acúmulo correspondentemente explosivo de demandas no curto prazo.
A conclusão lógica é que o FMI é pequeno demais para servir a seu objetivo essencial. A justificativa para uma instituição capaz de fornecer crédito para países solventes quando eles enfrentam crises de liquidez continua forte. No mínimo, o comportamento de muitas economias emergentes sugere que elas acreditam que o acesso a essa liquidez é realmente essencial. Mas, na ausência de um fundo global, ou, nesse sentido, regional, suficientemente grande elas estão adotando a dispendiosa prática do auto-seguro.
Hoje o FMI não pode fornecer a liqüidez necessária. Não significa que não tenha mais nada a fazer. Mas garante que a economia mundial não funcione tão bem quanto deveria. O próximo chefe do FMI precisa assumir a liderança intelectual sobre isso, o mais premente desafio na macroeconomia global. Estará à altura do trabalho? De certa forma, duvido.


Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves


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