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OPINIÃO ECONÔMICA
Cade 2000: a missão
RENAULT DE FREITAS CASTRO
O início de uma nova fase do
Cade torna especialmente
oportuna a reflexão sobre a importância do tema antitruste para o Brasil. É possível existir por
aqui uma agência antitruste realmente independente? Como deve
essa agência lidar com eventuais
conflitos entre objetivos de política industrial e determinações da
lei antitruste? A aplicação da lei
antitruste tem contribuído para
aumentar a segurança jurídica
dos investidores ou tem reforçado
a impressão de que é possível contornar certas restrições legais com
o apoio do governo?
Alguns podem achar que o próprio texto da Lei Antitruste (lei nº
8.884/94) responde a muitas dessas questões. Mas é preciso admitir que os casos mais rumorosos
julgados pelo Cade nos últimos
anos contribuíram para transmitir à sociedade sinais muito confusos sobre a forma de atuação
desse órgão.
No caso Gerdau, de 94, o Cade
decidiu pela aprovação parcial da
operação, determinando que a
Gerdau vendesse o controle da Siderúrgica Pains, evitando, assim,
o que foi considerado uma excessiva concentração no mercado de
aços não-planos. Essa decisão
simplesmente não foi cumprida
no prazo legal. O cumprimento
formal demorou mais de um ano
e só teve início depois que o Cade
negociou com a Gerdau a flexibilização dos termos e da forma de
implementação de sua decisão.
No chamado caso Kolynos, de
96, que resultou na concentração
de 75% da produção de creme
dental nas mãos de um único produtor, a aprovação do Cade foi
condicionada à retirada da marca Kolynos do mercado por quatro anos. Já quase ao final desse
prazo (março de 2001), pesquisas
insuspeitas apontam que as restrições impostas pelo Cade têm se
mostrado insuficientes para encorajar a entrada de rivais efetivos
nesse mercado. Ao contrário: vão
resultar num paradoxal reforço
do poder da empresa compradora. De fato, com a iminente volta
da marca Kolynos ao mercado,
seus proprietários vão sustentar a
liderança no mercado de creme
dental não mais com apenas
duas, mas com três das melhores
marcas do país (Kolynos, Colgate
e Sorriso).
No caso AmBev, de 99, a gritante divergência entre a decisão do
Cade e os pareceres dos órgãos
competentes dos ministérios da
Fazenda e da Justiça, como também da Procuradoria do Cade, foi
suficiente para evidenciar a excessiva brandura da restrição imposta pelo conselho para aprovar
a operação. Contrariando o bom
senso, a decisão apoiou-se na conveniente fantasia de que fusões
como a da Brahma com a Antarctica -apesar de praticamente
eliminarem a concorrência em
determinado mercado- aumentam o bem-estar da sociedade,
podendo levar até mesmo a reduções duradouras no preço final do
produto relevante.
Casos como esses ensinam que
as decisões da agência antitruste
precisam conter doses maiores de
rigor e coerência técnica, sob pena
de se mostrarem ineficazes e até
contraproducentes. É preciso
mais coragem e confiança para
decidir de acordo com critérios
consagrados tecnicamente, explorando os limites da lei para privilegiar o bem comum em relação
ao interesse privado. É preciso
menos timidez para aplicar a lei
de maneira isonômica e mais desprendimento para enfrentar as
consequências de uma atuação
imparcial.
Pagando o preço por decisões
tão suaves como a da AmBev, o
Cade tem sido criticado até por
publicações da estatura da revista
"The Economist" ("South American Airlines - cancelled flight",
edição de 6 de maio), que, lembrando a recente aprovação da
"fusão monopolística" dos dois
maiores fabricantes de cerveja do
Brasil, menospreza as autoridades antitruste brasileiras ao afirmar que, depois disso, é perfeitamente possível imaginar que seria também aprovada a criação
de um monopólio nacional no setor de transporte aéreo, mesmo
considerando que as quatro grandes empresas desse segmento estão sendo investigadas devido a
acusações de formação de cartel.
Sem entrar no mérito dessa
questão, o fato é que muitos dos
casos submetidos ao Cade têm
importância internacional e dão
grande exposição às suas decisões. E no mercado global há cada
vez menos lugar para cenas de casuísmo explícito visando a proteção de interesses paroquiais.
Os casos Microsoft e MCI/
Sprint, dentre vários outros, são
demonstrações inequívocas de
que a ação firme e determinada
do Estado em defesa da livre concorrência não está fora de moda
nem prejudica a saudável dinâmica da organização industrial.
Demonstram, ainda, que, mesmo
atentas ao contexto e à realidade
econômica, as mais importantes
agências antitruste do mundo zelam pela ordem econômica por
meio da imposição de limites claros à atuação das forças de mercado. São decisões exemplares
que sinalizam para o mercado os
parâmetros empregados pela autoridade na aplicação da lei.
Talvez caiba aperfeiçoar a lei
brasileira e certamente devem ser
assegurados ao Cade a estrutura
e os recursos compatíveis com a
nobreza de sua missão. Mas a reforma mais urgente não depende
de nada disso e pode ser operada
pelo próprio colegiado, já, com o
simples exercício pleno de suas
prerrogativas e atribuições legais
e com a competência técnica de
que dispõe.
Renault de Freitas Castro, 47, é economista, mestre pela Universidade de Oxford (Inglaterra), pós-graduado em direito econômico pela Fundação Getúlio
Vargas e ex-conselheiro do Cade.
Excepcionalmente hoje Paulo Nogueira
Batista Jr. não escreve nesta coluna.
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