São Paulo, quinta-feira, 10 de agosto de 2000


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OPINIÃO ECONÔMICA

Cade 2000: a missão

RENAULT DE FREITAS CASTRO

O início de uma nova fase do Cade torna especialmente oportuna a reflexão sobre a importância do tema antitruste para o Brasil. É possível existir por aqui uma agência antitruste realmente independente? Como deve essa agência lidar com eventuais conflitos entre objetivos de política industrial e determinações da lei antitruste? A aplicação da lei antitruste tem contribuído para aumentar a segurança jurídica dos investidores ou tem reforçado a impressão de que é possível contornar certas restrições legais com o apoio do governo?
Alguns podem achar que o próprio texto da Lei Antitruste (lei nº 8.884/94) responde a muitas dessas questões. Mas é preciso admitir que os casos mais rumorosos julgados pelo Cade nos últimos anos contribuíram para transmitir à sociedade sinais muito confusos sobre a forma de atuação desse órgão.
No caso Gerdau, de 94, o Cade decidiu pela aprovação parcial da operação, determinando que a Gerdau vendesse o controle da Siderúrgica Pains, evitando, assim, o que foi considerado uma excessiva concentração no mercado de aços não-planos. Essa decisão simplesmente não foi cumprida no prazo legal. O cumprimento formal demorou mais de um ano e só teve início depois que o Cade negociou com a Gerdau a flexibilização dos termos e da forma de implementação de sua decisão.
No chamado caso Kolynos, de 96, que resultou na concentração de 75% da produção de creme dental nas mãos de um único produtor, a aprovação do Cade foi condicionada à retirada da marca Kolynos do mercado por quatro anos. Já quase ao final desse prazo (março de 2001), pesquisas insuspeitas apontam que as restrições impostas pelo Cade têm se mostrado insuficientes para encorajar a entrada de rivais efetivos nesse mercado. Ao contrário: vão resultar num paradoxal reforço do poder da empresa compradora. De fato, com a iminente volta da marca Kolynos ao mercado, seus proprietários vão sustentar a liderança no mercado de creme dental não mais com apenas duas, mas com três das melhores marcas do país (Kolynos, Colgate e Sorriso).
No caso AmBev, de 99, a gritante divergência entre a decisão do Cade e os pareceres dos órgãos competentes dos ministérios da Fazenda e da Justiça, como também da Procuradoria do Cade, foi suficiente para evidenciar a excessiva brandura da restrição imposta pelo conselho para aprovar a operação. Contrariando o bom senso, a decisão apoiou-se na conveniente fantasia de que fusões como a da Brahma com a Antarctica -apesar de praticamente eliminarem a concorrência em determinado mercado- aumentam o bem-estar da sociedade, podendo levar até mesmo a reduções duradouras no preço final do produto relevante.
Casos como esses ensinam que as decisões da agência antitruste precisam conter doses maiores de rigor e coerência técnica, sob pena de se mostrarem ineficazes e até contraproducentes. É preciso mais coragem e confiança para decidir de acordo com critérios consagrados tecnicamente, explorando os limites da lei para privilegiar o bem comum em relação ao interesse privado. É preciso menos timidez para aplicar a lei de maneira isonômica e mais desprendimento para enfrentar as consequências de uma atuação imparcial.
Pagando o preço por decisões tão suaves como a da AmBev, o Cade tem sido criticado até por publicações da estatura da revista "The Economist" ("South American Airlines - cancelled flight", edição de 6 de maio), que, lembrando a recente aprovação da "fusão monopolística" dos dois maiores fabricantes de cerveja do Brasil, menospreza as autoridades antitruste brasileiras ao afirmar que, depois disso, é perfeitamente possível imaginar que seria também aprovada a criação de um monopólio nacional no setor de transporte aéreo, mesmo considerando que as quatro grandes empresas desse segmento estão sendo investigadas devido a acusações de formação de cartel.
Sem entrar no mérito dessa questão, o fato é que muitos dos casos submetidos ao Cade têm importância internacional e dão grande exposição às suas decisões. E no mercado global há cada vez menos lugar para cenas de casuísmo explícito visando a proteção de interesses paroquiais.
Os casos Microsoft e MCI/ Sprint, dentre vários outros, são demonstrações inequívocas de que a ação firme e determinada do Estado em defesa da livre concorrência não está fora de moda nem prejudica a saudável dinâmica da organização industrial. Demonstram, ainda, que, mesmo atentas ao contexto e à realidade econômica, as mais importantes agências antitruste do mundo zelam pela ordem econômica por meio da imposição de limites claros à atuação das forças de mercado. São decisões exemplares que sinalizam para o mercado os parâmetros empregados pela autoridade na aplicação da lei.
Talvez caiba aperfeiçoar a lei brasileira e certamente devem ser assegurados ao Cade a estrutura e os recursos compatíveis com a nobreza de sua missão. Mas a reforma mais urgente não depende de nada disso e pode ser operada pelo próprio colegiado, já, com o simples exercício pleno de suas prerrogativas e atribuições legais e com a competência técnica de que dispõe.


Renault de Freitas Castro, 47, é economista, mestre pela Universidade de Oxford (Inglaterra), pós-graduado em direito econômico pela Fundação Getúlio Vargas e ex-conselheiro do Cade.

Excepcionalmente hoje Paulo Nogueira Batista Jr. não escreve nesta coluna.


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