São Paulo, quarta-feira, 10 de novembro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Bush e o Brasil

PAULO RABELLO DE CASTRO

A democracia tem dessas coisas. O Bush do primeiro mandato, há quatro anos, vencedor apenas no tapetão eleitoral, mas perdedor por votos contados, passa à história neste ano como o Bush da preferência popular dos americanos. O resto do mundo -salvo os que, como Bin Laden e seu séqüito assassino, torcem pela ruína da nação do Tio Sam- se recolhe em tristes conjunturas sobre a saúde da economia mundial e o destino das liberdades democráticas, diante do triunfo belicista acolitado pela vontade de uma maioria forjada pelo medo.
Poucas vezes, nas últimas décadas, a economia dos EUA esteve tão desequilibrada nos seus aspectos essenciais. O déficit externo americano é espetacular: aproxima-se de 6% do PIB, o que provoca a necessidade de financiar esse desequilíbrio pelas remessas de capital que o mundo todo faz ao comprar títulos da dívida do governo. As pantagruélicas importações dos americanos sustentam a máquina exportadora asiática, em especial a da China, que devolve esses ganhos, comprando os "bonds" americanos. Viram, assim, os asiáticos, credores do Tio Sam. Para tentar reequilibrar o tremendo rombo do seu comércio externo, agravado pelo dispêndio da guerra, o todo-poderoso dólar se desvaloriza diante do euro, do iene e agora também da moeda chinesa, o yuan.
Mas a queda do dólar pune os aplicadores estrangeiros que financiam os EUA. Como recompensá-los, senão elevando os juros pagos nas transações financeiras em dólar? Esse é o desafio a ser enfrentado por Bush no seu segundo mandato. Acontece que o quadro doméstico americano tem um agravante: o déficit fiscal provocado pelo corte de impostos e pela despesa da campanha no Iraque. Bush conseguiu um prodígio no primeiro mandato. No quadriênio que agora se encerra, conseguiu inverter um superávit fiscal alcançado por Bill Clinton e afundou a economia de novo num déficit fiscal recorde de quase 5% do PIB, colocando os EUA na corrida para o subdesenvolvimento fiscal.
A conjugação desses dois déficits põe uma pressão extra sobre o orçamento das famílias americanas. O Fed, banco central dos EUA, chefiado por um afiadíssimo maestro do abismo, trouxe os juros básicos para 1%, facilitando, assim, o refinanciamento generalizado de todo o setor privado, assim evitando -ou, talvez apenas postergando- o dia do juízo final, quando as contas de um país que gasta muito acima de suas possibilidades terão que ser ajustadas ao nível da realidade.
Os que ficamos abaixo da linha do Equador, como o Brasil, já começamos a sentir os efeitos dramáticos dos ajustes que o "mercado" determinará. Sofrerão justos pelos pecadores, como é de praxe. Os justos que forem desatentos, desalinhados ou deslumbrados sofrerão um pouco mais. Estamos entre esses últimos. Nossa política econômica é desatenta aos movimentos do ciclo de negócios mundial porque encolhemos quando devíamos nos expandir e expandimos, em geral, fora de compasso com o resto do mundo.
Somos desalinhados porque nosso câmbio raramente reflete as intenções verdadeiras de um país pobre, mas produtivo: deixamos o câmbio valorizar-se para dar sobrevida aos projetos políticos do partido de ocasião para, logo depois, desvalorizar ruinosamente a moeda, com repercussão negativa sobre a inflação e os juros domésticos.
Enfim, somos deslumbrados por acreditar na nossa própria mentira. Pensamos ser possível ajustar um país com sério desequilíbrio fiscal por meio da política de juros, embora o remédio termine por matar o paciente.
Por tudo isso, enquanto os EUA se preparam para iniciar uma longa marcha rumo à decadência econômica, outros países avançam, mesmo com dificuldade, para disputar parte desse espaço possível num futuro qualquer. São países como Índia, Rússia, e principalmente, a China. O Brasil poderia ser um deles. Mas preferiu tomar o caminho caudatário do império decadente. Novas e mais sutis propostas de atrelamento incondicional da economia tupiniquim se esboçam, das quais a mais perigosa é a que defende a adoção, no Brasil, da conversibilidade "à la Argentina". Haja burro pra tantos Cavallos!


Paulo Rabello de Castro, 55, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.
E-mail - rabellodecastro@uol.com.br


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