UOL


São Paulo, quarta-feira, 10 de dezembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

Lula, Vanda e papos natalinos

PAULO RABELLO DE CASTRO

Com a mesma simplicidade que Lula consegue traduzir temas complexos na sua oratória presidencial aos atentos auditórios, assim também o Brasil inteiro verbalizará conceitos sobre a figura do presidente e seu governo em torno das animadas mesas de confraternização, como sempre ocorre em época de Natal. São os papos natalinos, sendo impossível deles excluir uma avaliação dessa extraordinária novidade que têm sido Lula e o PT no exercício do mais alto estágio de poder da República.
Avaliação parcial, preliminar mesmo, recheada de heranças do governo anterior, mas, afinal, uma opinião sensorial do povo brasileiro, que chega ao final de mais um ano sacrificado e, com o peso das frustrações populares, que não são poucas, senta-se para compartilhar uns minutos de lazer com a família, com amigos, e jogar uma conversa fora.
Foi o que fizemos lá em casa no último fim de semana, num Natal antecipado pelo calendário de viagens de alguns membros da família. E o papo rolou para o lado da política, como não poderia deixar de acontecer.
Éramos dez adultos à mesa, na maioria jovens, no início de sua carreira profissional, praticamente todos exercendo alguma atividade por conta própria. Uma amostra estatisticamente viesada e incompleta da opinião "média" brasileira, mas, ainda assim, um painel interessante. Resolvi arriscar, então, a pergunta que me cativava para esta coluna: "E o Lula, o que vocês achariam de positivo -vejam bem- dele e do seu primeiro ano de governo?".
O tom talvez meio professoral da pergunta, no meio daquele belo cozido de fim de ano, colocou a mesa em guarda por alguns momentos ("Será que a conversa iria ficar séria de repente?"), mas veio logo o genro simpático para calibrar o sentido informal daquela pesquisa improvisada. "Acho" -disparou ele- "que o melhor dia do Lula até hoje foi o primeiro, porque nunca vi tanta gente alegre e esperançosa como naquela posse em Brasília. Para mim, isso foi o mais positivo dele até agora."
Pensei com meus botões: "Gostei dessa resposta. Dá para pensar". Mas aí o resto da turma perdeu a inibição e pulou dentro, com variadas visões do lado positivo do Lula ano um. "A cultura", lembrou uma filha. "Lula, de fato, valorizou o lado artístico e cultural, e isso foi muito bom." "Vejo como principal" -lembrava outra- "que o Lula se vendeu muito bem lá fora, ele e o Brasil, afastando aquele medo que os estrangeiros tinham de um novo Fidel barbudo. Ele recolocou a imagem do país como uma democracia que funciona."
O papo continuava a rolar com comentários de parte a parte. Eu apenas lembrava que o nome do jogo era recordar o que de positivo houvesse, nada de negativo. A marqueteira da casa esperava seu momento. Quando houve uma deixa, ela atalhou: "Para mim, Lula é o Senhor dos Bonés", e trancou-se de novo na sua mudez, esperando as reações. A alusão-trocadilho ao livro e filme "Senhor dos Anéis" foi instigante.
O presidente que veste a camisa e põe o boné dos variados grupos e movimentos sociais e de cidadania ajuda a colar a imagem de solidariedade e de presença do poder de Brasília às necessidades mais visíveis do povo. Mas ali estava também, na sacada do Senhor dos Bonés, a crítica embutida ao lado marqueteiro do poder, à falta de maior profundidade no trato de qualquer questão, o lado Andy Warhol dos temas nacionais na mídia presidencial.
A essa altura, uma rodada inteira à volta da mesa já acontecera, mas a ausência de certas menções me intrigava tanto quanto a curiosidade das facetas lembradas da Presidência. Tive que interceder: "Mas e o Fome Zero, gente?". Para quê! Protesto geral, o Fome Zero não podia entrar na lista de jeito nenhum. Ainda assim, aquela negativa me empurrava para ir um pouco mais além. Era preciso recorrer a uma outra bancada, e ali estava a inteligente e eficiente Vanda, cozinheira e mãe de numerosa família, que a tudo acompanhava atentamente, já que estávamos todos num só ambiente integrado sala-cozinha.
Vanda, que tem gosto em opinar, apesar de discreta, não esperou segundo convite: "De positivo, mesmo, até agora, não vi nada, não". A assertividade cortante emudeceu os comensais.
Aos poucos, uns e outros tentamos voltar ao ringue, buscando demover Vanda do seu ponto de vista um tanto radical, mas ela não arredou pé. Provocada, ela crescia no debate: "Vocês não podem tratar o povo com cestinha de Fome Zero, não. Quem quer cestinha?". E emendava: "O povo quer e precisa é de emprego. Mas cadê o emprego? Gente, o emprego tá difícil, mesmo! Quase todo mundo desempregado lá em volta de casa!".
O protesto veemente encerrou a pesquisa, mas não acabou com a alegria da mesa de Natal. Não obstante sua verve nordestina, Vanda continuou muito bem-humorada e o cozido estava maravilhoso.


Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

E-mail -
rabellodecastro@uol.com.br


Texto Anterior: Sul e Sudeste receberam 62% dos recursos
Próximo Texto: Impostos: Senado muda ISS e favorece liberais
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.