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OPINIÃO ECONÔMICA
Trabalho e dignidade
RUBENS RICUPERO
Pode soar como luxo falar de
qualidade do emprego em um
país onde a simples quantidade
encolheu tanto que 13% da população ativa e uma de cada cinco
pessoas da área metropolitana de
São Paulo não conseguem achar
nenhum trabalho. No entanto,
nunca se alcançará solução satisfatória ao problema do trabalho
humano se o objetivo quantitativo
do pleno emprego for perseguido
com sacrifício das condições qualitativas de remuneração, segurança e bem-estar que devem acompanhar o atingimento dessa meta.
Renunciar ao pleno emprego,
aceitar uma taxa "natural" de desocupação, em nome da credibilidade financeira, é inverter a hierarquia dos valores humanos.
Equivale ao desperdício irreversível de jogar fora o potencial criativo único de cada indivíduo. Não é
verdade que a estabilidade seja incompatível com o pleno emprego.
A prova é a orientação do Federal
Reserve, o banco central americano, comprometido por lei a compatibilizar a estabilidade de preços
com o nível de emprego e o crescimento econômico. Comparem-se
os resultados com a Europa, onde
o Banco Central tem mandato limitado à luta contra a inflação: a
superioridade do modelo dos EUA
impõe-se de forma irrecusável.
Mesmo nos Estados Unidos, o resultado é falho, pois a expansão de
empregos se faz às custas do aumento do que o presidente Clinton
chamou de "working poors", isto é,
os pobres que labutam oito horas
por dia, mas cujo salário de miséria não lhes permite atender às necessidades mínimas de uma família. Não há necessidade de ser socialista para compreender o que
Henry Ford percebeu no início do
século 20: somente os operários
bem remunerados têm condições
de se converterem em consumidores dos produtos das fábricas onde
trabalham, a começar pelos automóveis da famosa marca Ford bigode da época.
É por isso que Juan Somavia, diretor-geral da OIT (Organização
Internacional do Trabalho), definiu como meta central o "emprego
decente" ou digno, e não meramente qualquer tipo de emprego.
O que se deve buscar é o trabalho
produtivo, com remuneração adequada, direitos bem estabelecidos
e proteção social. Estima a OIT
que há no mundo 180 milhões de
desempregados, cifra multiplicada
por três quando se consideram os
"working poors", que trabalham e
ganham menos de US$ 1 por dia.
Um dos componentes do trabalho decente é a segurança. Segundo a OIT, a cada ano, 250 milhões
de trabalhadores sofrem acidentes
de trabalho e 300 mil morrem em
consequência deles. Adicionando
as perdas devido a doenças ocupacionais, chega-se ao número espantoso de 1 milhão de mortos por
ano, muito mais que as vítimas de
guerras recentes! Não obstante,
quase não se fala do assunto.
Outro elemento qualitativo da
decência é o bem-estar, a satisfação produzida pelo trabalho, o
sentimento de uma relação pessoal com a atividade profissional e
com o produto que ela gera. É o
contrário da alienação. É conhecido o texto de "O Capital" no qual
Marx critica o aviltamento do trabalho consequente ao capitalismo
industrial: "O produtor torna-se
um mero acessório da máquina,
só se exigindo dele a operação
mais simples e monótona (...)
Massas de operários, comprimidos
uns sobre os outros nas fábricas,
são organizados militarmente (...)
Eles não são apenas os escravos da
classe burguesa, do Estado burguês, mas, a cada dia e hora, os escravos da máquina, do contramestre e, sobretudo, do burguês industrial".
Por vezes, os marxistas tenderam a acentuar mais, na alienação, o aspecto da separação entre o
trabalhador e o produto que ele
cria, mas sobre o qual não tem nenhum direito. É um pouco o que
João Cabral ou Chico Buarque
evocaram a propósito do operário
de construção e o edifício que
constrói, mas onde não pode entrar. Já em relação ao efeito embrutecedor da repetição mecânica
de tarefas iguais na linha de montagem, Chaplin o estigmatizou em
"Tempos Modernos" de modo
contundente e inesquecível.
Podia-se imaginar que o advento da sociedade pós-industrial
anunciada por Daniel Bell, com a
multiplicação das ocupações de
conteúdo intelectual, tivesse eliminado o problema, mas não é bem
assim. Ele só mudou de feição. Hoje, nas sociedades avançadas,
quem faz os trabalhos penosos, repetitivos, repugnantes, são os que
estão mais baixo na escala social,
párias ou intocáveis do nosso tempo, muitos dos quais imigrantes
miseráveis, latinos nos EUA, africanos, árabes, na Europa.
Quem pensa que exagero tem
apenas de ler, para convencer-se
do contrário, "Hard Work: Life in
Low-Pay Britain", de Polly Toynbee (Bloomsbury, 2003). A autora
é uma colunista do "Guardian",
que se disfarçou para trabalhar
como servente num hospital de
Londres, vivendo numa das moradias populares do governo. Por
mais que se esforçasse, não conseguiu sobreviver na base de pouco
mais do que o salário mínimo (ì
4,35 por hora), sendo obrigada a
"trapacear", isto é, a esgueirar-se,
nos fins de semana, até seu apartamento a fim de poder ter uma
refeição decente. Pior que o salário
é o desprezo: não ser chamada pelo nome, ser tratada por médicos e
enfermeiros não como uma pessoa, mas como uma coisa.
Na resenha que escreveu para o
"Financial Times", sob o sugestivo
título de "Condenada a uma vida
de trabalho forçado" (edição de 8/
9 de fevereiro de 2003), Michael
Prowse observa que, no século 21, o
local de trabalho não parece diferir muito do que era no século 19:
no fundo, o tratamento depende
do status. O mais grave de ser mal
pago é o desdém que acompanha
tal condição. Nota também que a
maioria dos que recebem salário
mínimo trabalha para o governo,
não diretamente, e sim por meio
de empregos terceirizados. Ao utilizar os serviços de agências de trabalho temporário, o governo -e
não só o inglês, pois a situação entre nós não é diversa- lava as
mãos de sua responsabilidade pelas condições de pagamento e de
trabalho de milhões dos trabalhadores mais vulneráveis. Dessa maneira hipócrita, o Estado foge a seu
dever e dá "a alguns dos piores
empregadores (...) uma maior capacidade para explorar os trabalhadores pior remunerados".
Prowse comenta, e nós com ele: "É
impossível deixar de perguntar-se
quantos dos que airosamente advogam esse tipo de "flexibilidade"
-políticos, gente do governo, colunistas da imprensa- gostariam
de ser submetidos às mesmas regras de "laissez-faire" que prescrevem para os outros".
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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