São Paulo, domingo, 11 de janeiro de 2004

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LUÍS NASSIF

O centenário de Lalá

Ari Barroso e Lamartine Babo tinham muitas coisas em comum. A mais conhecida delas é a música "No Rancho Fundo", uma composição de Ari que Lamartine substituiu a letra por outra dele, constituindo um clássico.
Ambos são quase da mesma idade e, ao lado de Noel Rosa, foram os iniciadores da moderna música popular brasileira urbana, uma era que se iniciou em 1930, data redonda. Ambos foram autores ecléticos de vários ritmos e estão entre os maiores compositores da história.
Dos anos 30 aos anos 70, não houve ritmo da música brasileira em que ambos não tenham dado contribuição essencial, da marchinha à valsa, do samba-canção aos hinos futebolísticos.
Depois de tentativas de emprego formal, de ter passado pelo teatro de revista, convivendo com Eduardo Souto e Bastos Tigre, Lamartine aproximou-se do "Bando dos Tangarás", grupo composto por Noel, João de Barro (o Braguinha) e Almirante, entre outros.
Junto com Noel e Ari Barroso ingressariam no histórico ano de 1930 revolucionando a música brasileira urbana, deixando para trás a influência regionalista dos Turunas da Mauricéia e o estilo de cantar de Augusto Calheiros.
Lamartine foi quem primeiro buscou nos compositores de Recife a base musical que gerou a marchinha, primeira manifestação moderna da música popular, gênero que vicejou no Rio de Janeiro a partir de 1930 e, durante duas décadas, foi mais relevante que o próprio samba.
Em 1932 colocou letra em "O Teu Cabelo Não Nega" e "Linda Morena" ("Linda morena, morena / morena que me faz sonhar") dos irmãos Valença, consolidando a mesclagem da música carioca urbana com o frevo pernambucano, com um pouco de influência das operetas, teatros de revista, para gerar uma das vertentes mais saborosas e criativas da música brasileira.
Lembro, certa vez no Bar do Alemão, em São Paulo, quando apareceu Braguinha, letrista de "Carinhoso" e autor de marchinhas memoráveis de Carnaval. Saudamo-o como o rei do Carnaval. E ele, sem falsa modéstia, disse: "Rei é o Lamartine Babo. Eu sou seguidor".
Lamartine tinha a verve típica carioca, assim como Noel, com quem compôs "A, E, I, O, U", um dos clássicos do carnaval carioca, e também "AB Surdo", uma sátira ao futurismo ("Nasci na Praia do vizinho, 86 vai fazer um mês / vai fazer um mês / e minha tia me emprestou cinco mil réis / pra comprar pastéis pra comprar pastéis / é futurismo, menina / é futurismo, menina / pois não é marcha / nem aqui nem lá na China").
Outro clássico da marchinha foi "Joujou Balagandans", a divertidíssima "Canção Para Inglês Ver" ("Ai loviu forguétiscleine meini itapiru / forguetifaive anda u dai xeu no bonde Silva Manuel"), da mesma vertente em que Noel foi buscar material para o "Cinema Falado".
Compôs talvez a mais bela marcha carnavalesca da história, o "Hino do Carnaval Brasileiro" ("Salve a morena / a cor morena do Brasil fagueiro / salve o pandeiro / que desce o morro pra fazer a marcação").
Ao lado de Assis Valente, Lamartine imperou também em outra vertente rica da música brasileira, a das canções juninas.
É dele uma das principais, "Chegou a Hora da Fogueira" ("Chegou a hora da fogueira / é noite de são João / o céu fica todo iluminado / fica o céu todo estrelado / pintadinho de balão") e "Isto É Lá com Santo Antonio" ("Fui pedir numa oração / ao querido são João / que me desse o matrimônio"), que minha mãe cantava com uma graça só dela.
Outro gênero clássico, o samba-canção, mereceu contribuições essenciais de Lamartine. Não apenas "No Rancho Fundo", como "Serra da Boa Esperança", que compôs para um dentista com quem se correspondia, pensando ser mulher.
Americano doente, foi autor dos hinos dos principais clubes cariocas, dos quais o mais conhecido foi o "Hino do Flamengo" ("Uma vez Flamengo / sempre Flamengo").
Na valsa, foi parceiro de Francisco Matoso em "Eu Sonhei que Tu Estavas Tão Linda", de 1942.
Morreu em fevereiro de 1963, quase no Carnaval, assim como Ari Barroso.

E-mail: Luisnassif@uol.com.br


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