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São Paulo, terça-feira, 11 de fevereiro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Sobra mês no fim do salário

BENJAMIN STEINBRUCH

Lembro-me de um amigo, Gastão, que não vejo há anos. Classe média, vivia em constante crise financeira. Ele e a mulher trabalhavam, tinham razoável renda familiar, mas sempre faltava dinheiro no fim do mês ou, como diria Millôr Fernandes, sobrava mês no fim do salário.
Gastão gastava mais do que ganhava, estourava o cheque especial, entrava no cartão de crédito e vivia sempre dependendo de ajuda externa. Só com juros, gastava uma nota todo o mês. Um belo dia, esse amigo me pediu um empréstimo para pagar no mês seguinte. Um mês depois, com mil desculpas, disse que não poderia pagar e solicitou um novo empréstimo. A essa altura, eu já sabia que dificilmente receberia o dinheiro do primeiro empréstimo. Por mais que gostasse dele, pensei duas vezes, mas concordei.
Antes de concordar, porém, chamei-o para uma conversa e tentei incentivá-lo a fazer um ajuste nas contas domésticas. Afinal, ele tinha boa renda mensal e, enquanto não conseguia aumentá-la, precisava reduzir os gastos de forma que pudesse equilibrar o orçamento familiar e até garantir uma sobra, para começar a pagar as dívidas. Se tivesse seguido o conselho, teria recuperado rapidamente a credibilidade e poderia até voltar a pedir dinheiro emprestado.
Meu amigo de ontem lembra muito o Brasil de hoje pela necessidade de reformas. O Brasil, como Gastão, andou gastando mais do que arrecadava durante muitos anos, acumulou uma dívida enorme e paga uma fábula em juros. Para recuperar a credibilidade, enquanto não consegue aumentar as receitas, precisa cortar despesas. Se fizer isso e começar a quitar parte da dívida, voltará a ter crédito para pleitear novos empréstimos e financiar o almejado crescimento econômico.
É por isso que as reformas têm sido um assunto tão frequente neste início do governo Lula, principalmente a da Previdência e a do sistema tributário. O ideal seria fazer a reforma tributária e conseguir mais recursos para equilibrar as contas. Mas isso é impossível a curto prazo, porque os brasileiros já estão afogados em impostos e não há espaço para aumentar a carga tributária. Então, a solução é começar por reformas que cortem despesas.
A Previdência é o principal ralo por onde escoam os recursos da União. No ano passado, o déficit da Previdência foi de R$ 70 bilhões e este ano deve chegar a R$ 80 bilhões. É um dispêndio inaceitável para um país que destina apenas R$ 18 bilhões anuais para a educação por ano. Fechar o ralo da Previdência, portanto, é tarefa urgente.
Ocorre que as resistências são muito grandes. A maior parte do déficit, cerca de R$ 54 bilhões, advém da previdência do setor público. A maioria dos 3 milhões de pensionistas e aposentados do serviço público recebe um benefício modesto, de um a três salários mínimos mensais. Mas há privilégios inaceitáveis, de uma casta que se aposenta com salário integral sem ter contribuído para isso durante o período de trabalho.
Não se pode mexer em aposentadorias daqueles que já estão aposentados. Esses têm direitos adquiridos. Mas é possível e necessário mudar o sistema para evitar que os privilégios continuem. A proposta apresentada pelo ministro da Previdência, Ricardo Berzoini, cria um sistema único, pelo qual os novos servidores que ingressarem no setor público terão as mesmas obrigações e os mesmos benefícios dos trabalhadores do setor privado. Para aqueles que já estão no serviço público, haveria uma contagem proporcional ao tempo de serviço. Quem já contribuiu, por exemplo, durante 15 anos, teria metade de sua aposentadoria calculada de acordo com o sistema atual quando requerer o benefício, com 30 anos de serviço. A outra metade seguiria as regras do novo sistema.
Cabe à sociedade brasileira julgar se a mudança é justa ou injusta. Com sabedoria, o presidente Lula tem pressa, mas não afobação, por saber que o assunto é delicado. Deu 90 dias para que o ministro Berzoini faça consultas públicas e debata o tema no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social.
A palavra final, obviamente, caberá ao Congresso. Em algum momento deste ano, os parlamentares terão a responsabilidade de dizer se pretendem acabar com privilégios que impedem o crescimento da economia e a criação de empregos ou se, como meu amigo Gastão, insistirão na idéia suicida de manter gastos impagáveis para o país.


Benjamin Steinbruch, 49, empresário, é presidente do conselho de administração da Companhia Siderúrgica Nacional.

E-mail - bvictoria@psi.com.br



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