São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 2008

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VINICIUS TORRES FREIRE

Inflação alta, hipocrisia maior


Mundo rico se "alarma" com a carestia de alimentos e risco de fome, mas não menciona a sua culpa nesse cartório

ENTÃO O mundo agora se preocupa com a fome haitiana e africana. Dá vontade de rir, rir com escárnio, pois fome é um horror. Banco Mundial, FAO e outros penduricalhos burocráticos da ONU se dizem "alarmados" com a inflação mundial de alimentos, que deixará os pobres mais pobres etc. Parece que os líderes do mundo apenas se preocupam com um pouco mais de fome, com a fome extra, a "fome marginal", digamos sarcasticamente. Já a fome regular, "normal", tudo bem, eles dão de barato.
Cheira mal essa crise de consciência súbita. É evidente que a inflação da comida prejudica mais os mais pobres. O mau odor dessa santa onda de preocupação com os famélicos da terra vem do fato de que o mundo rico tem muita culpa nesse cartório.
Asiáticos saem da roça e consomem muito mais? Claro, isso bate na inflação. Mas, com tal estímulo de preços, por que a produção não responde à altura e mais rapidamente? Décadas de subsídios e proteção comercial para agropecuaristas de Europa e EUA deprimiram preços e por muito tempo reduziram a rentabilidade da agropecuária de parte grande do mundo pobre, quando não inviabilizaram investimentos em novas plantações ou em tecnologia para tornar as terras aráveis ou mais produtivas.
Um exemplo clichê e atual de protecionismo que prejudica a produção mais eficiente de comida é o subsídio americano ao seu caro álcool de milho. Se os EUA importassem álcool, teriam mais espaço para grãos e haveria mais renda em países pobres (embora mesmo o impacto dos biocombustíveis esteja sendo muito exagerado).
Outro fator da inflação mundial é o dólar. Os ricos americanos se esbaldaram de consumir além do que ganhavam, e os muito ricos se entupiram de dinheiro com a inflação de ativos financeiros (dessa ninguém se queixou). A bolha estourou, e os EUA passam parte da conta para o mundo, inflacionando sua economia, desvalorizando o dólar e ajudando assim também a encarecer o preço das commodities, de resto ainda vistas como proteção contra a inflação e alternativa de investimento ao papelório podre americano.
Empresas do mundo rico estão irritadinhas com a queda da margem de lucro devido à alta do preço de grãos, minérios e combustíveis. E há revolta contra o aumento de preços de produtos básicos exportados por países mais pobres. O clamor contra a inflação também é um aspecto de uma disputa global por grana, ponto.
Cereja desse bolo é a volta do malthusianismo, da idéia de que escasseiam os meios de sustentar os pobres do mundo, coro ecoado pelo ambientalismo reacionário. Mas o Brasil desenvolveu tecnologia para cultivar o cerrado, um dia considerado inviável. Na África? Neca.
Mais pontual, houve uma série de desastres climáticos em países produtores de comida. A hábil e fina diplomacia americana ainda criou tumulto duradouro no Oriente Médio, pondo em risco a produção de petróleo. E o mundo cresce muito, faz anos. Uma hora o ciclo vira e/ou vem inflação. Normal. Revoltante é a hipocrisia do "clamor" contra a carestia. Quem se alarmava quando os preços de recursos naturais desabavam, provocando também desemprego e fome no mundo pobre?

vinit@uol.com.br


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