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São Paulo, domingo, 11 de maio de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Travessa de espaguete

RUBENS RICUPERO

Se prevalecer a bilateralização da Alca pretendida pelos americanos, ela merecerá o nome de "travessa de espaguete": emaranhado de acordos discriminatórios impossíveis de destrinchar. O Brasil e o Mercosul serão os perdedores absolutos. Desterrados pelos EUA à categoria mais baixa, sofrerão discriminação em relação a todos os demais participantes, quase 30!
Será essa a consequência inelutável da eventual aceitação da proposta formulada por Washington em fevereiro. Em vez de apresentar uma lista única de reduções tarifárias válidas para todos os parceiros, o governo ianque dividiu em quatro suas ofertas. Favoreceu, em primeiro lugar, o Caribe (mais em teoria que na prática, pois a região tem menor possibilidade de aproveitar a oferta, devido ao subdesenvolvimento da estrutura produtiva). Em seguida, foi diminuindo os oferecimentos, em quantidade e qualidade, à América Central, aos andinos e ao Mercosul, de acordo com o sábio princípio de só dar bife suculento a quem não tem dentes. Ou, na imagem da antiga fábula, o alimento da raposa é colocado em vidro de gargalo comprido e estreito, ao passo que o da cegonha é espalhado em prato raso e chato.
Alegam os EUA que sua motivação é tratar melhor os mais fracos, as economias menores. Olhando de perto, vê-se que não é bem assim. As reuniões ministeriais da Alca recomendaram, de fato, que se estendesse tratamento favorecido aos débeis e pequenos. Essas economias, que devem definir-se de modo rigoroso a fim de evitar abusos, espalham-se por todos os grupos, inclusive o Mercosul. Pelo critério americano, chega-se ao absurdo de privilegiar a Colômbia, uma das economias maiores e de desempenho mais constante e positivo do continente, em detrimento do Paraguai, nação muito menos desenvolvida e, ainda por cima, sem acesso ao mar. As concessões feitas ao Chile no acordo bilateral já negociado são bem superiores às oferecidas à Bolívia, as desfrutadas pelo México no Nafta, incomparavelmente melhores que as do Equador.
Levado a esse extremo, o argumento da diferenciação obrigaria a adotar regras comerciais distintas para cada um dos quase 200 países do mundo, uma vez que, a rigor, não existem dois em situação igual. Seria a negação do sistema comercial baseado na cláusula da nação mais favorecida, pela qual toda concessão feita por uma nação a outra qualquer automaticamente se generaliza a todas as demais. Em outras palavras, as concessões bilaterais se multilateralizam. É daí que vem o nome "sistema multilateral de comércio".
Só se admite, na OMC/Gatt, tratamento preferencial, não-estensível a terceiros, portanto discriminatório, no interior dos acordos de livre comércio. Nesse caso, a exceção se justifica porque os participantes estão dispostos a liberar por completo o comércio entre si em ritmo mais rápido que os outros. Ora, na versão de Washington, cria-se um acordo de geometria variável com seis velocidades diferentes para a redução das barreiras ao intercâmbio: as quatro categorias mencionadas, mais a do Nafta e a do acordo com o Chile. Isto é, em nome da abolição das barreiras existentes, criam-se ou confirmam-se barreiras que não existiam antes -as preferências discriminatórias a certos parceiros, inventando obstáculos novos, quando o objetivo do acordo devia ser acabar com todos os obstáculos!
No momento em que os britânicos abandonaram um século de livre-cambismo e adotaram em 1933 preferências para seus domínios -início do fim do sonho argentino- elas foram chamadas de "preferências imperiais". É essa característica que distingue, desde então, a política comercial da Europa, de favorecimento a suas ex-colônias. A mesma inspiração se detecta agora nessa proposta, que obedece ao velho princípio romano de "divide e impera". O princípio infelizmente funciona. Os favorecidos pelos ossos atirados pelos poderosos aferram-se a eles com unhas e dentes, embora os benefícios sejam em grande parte ilusórios, como na fábula citada e pelo que se vê da situação em que se encontram africanos e caribenhos. Já os castigados por andar em má companhia -os parceiros do Brasil no Mercosul- sentem-se atraídos pela tentação da recompensa. Para os praticantes da manipulação, ela tem a vantagem adicional de ser de graça, pois consiste em ostentar caridade com o dinheiro alheio. Com efeito, o que fazem os grandes não é sacrificar uma parcela de mercado antes abastecida internamente, mas transferir ou desviar ao novo beneficiário corrente de comércio que, em condições normais de concorrência, favorecia, por exemplo, o Brasil. Trata-se, como se diz, de roubar de Pedro para dar a Paulo.
A maioria dos observadores brasileiros não se deu conta de que, com isso, a tática negociadora americana sofreu mudança qualitativa para pior. As análises dos inconvenientes da Alca continuam a se concentrar no que estava presente desde o início: a resistência dos EUA em liberalizar de modo significativo os produtos sensíveis do nosso interesse, de reduzir ou eliminar os subsídios e obstáculos em agricultura, em abrir mão das barreiras não-tarifárias em aço e outras áreas. Todas essas coisas continuam, mas, apesar de protecionistas, elas são de alguma forma compreensíveis porque correspondem a interesses concretos de setores americanos. Já a tática atual é mais malevolente, de molde até a questionar a boa-fé, pois se destina a isolar e prejudicar o Brasil. Dir-se-á que na guerra tudo vale, mas então não se vê como conciliar tal atitude com as declarações positivas, até amistosas, das mais diversas autoridades americanas. Como alguém sinceramente interessado em alcançar com os EUA acordo mutuamente vantajoso, faço votos para que logo se abandone essa infeliz tática negociadora. Só há duas razões para um país entrar numa negociação comercial: ganhar mais acesso a mercado ou, na pior hipótese, evitar perder a possibilidade de concorrer com outros em igualdade de condições. Não é demais esperar que os negociadores americanos reconheçam que uma nação como o Brasil não pode razoavelmente aceitar acordo no qual não apenas não ganhe como seja ainda obrigado a perder.

  Nota: esse e outros aspectos serão abordados no debate sobre o livro "Folha explica a Alca", de que participarei com outros convidados amanhã, a partir das 20h, no auditório da Folha (alameda Barão de Limeira, 425, 9º andar, Campos Elíseos, São Paulo).


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).

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