São Paulo, domingo, 11 de maio de 2008

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ANÁLISE

Incoerências do fundo soberano brasileiro

ÉRICA FRAGA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Brasil vai entrar para a lista dos países que possuem fundos soberanos como uma exceção incoerente. Entre os pouco mais de 30 países que lançaram instrumentos desse tipo, mais de 20 geram tanto superávits fiscais como em conta corrente -muitas vezes expressivos e estruturais-, os demais exibem pelo menos um dos dois indicadores. Não é o caso do Brasil, que tem déficit fiscal, ou seja, gasta mais do que arrecada; e, a partir deste ano, voltará a ter resultado negativo na sua conta corrente (que contabiliza o resultado das relações de trocas de bens, serviços e renda de um país com o exterior).
O único entre os países com típico fundo soberano que, a exemplo do Brasil, foge à regra dos superávits é o Cazaquistão. Mas esse quadro vai mudar, já que o Cazaquistão ainda não atingiu o pico de produção de seus enormes campos de petróleo, o que deve acontecer ao longo dos próximos anos, quando passará a gerar superávits em sua conta corrente. Embora o Brasil tenha feito importantes descobertas de reservas de petróleo recentemente, ainda não está claro quando e o quanto isso deverá influenciar nas contas externas.
Não é mero acaso que fundos soberanos e superávits, especialmente em conta corrente, andem juntos. O objetivo desses instrumentos é justamente investir o excedente de moeda estrangeira que determinado país possui. A idéia pode ser garantir um futuro tranqüilo para próximas gerações: o caso clássico é o de países altamente dependentes da exploração de petróleo ou outro recurso natural não-renovável, cujas reservas tendem a se exaurir. A maior parte dos fundos soberanos (como os dos Emirados Árabes Unidos, da Arábia Saudita e do Kuait) se enquadra nesse perfil.
No caso de países que geram superávits estruturais em suas contas correntes, mesmo sem depender da exportação de commodities (China, Cingapura, Coréia do Sul), os fundos soberanos visam garantir um retorno mais alto para o excesso de poupança gerado do que esta teria se fosse gerenciada de forma mais conservadora como reserva internacional. Há ainda poucos países que só possuem superávit fiscal (Austrália, Nova Zelândia, Irlanda) e aplicam parte desse excedente em fundos soberanos que têm como objetivo garantir a pensão de futuros aposentados.
Ou seja, governos lançam fundos soberanos geralmente porque têm superávit em conta corrente. O Brasil quer revolucionar e inverter essa lógica: as autoridades econômicas dizem que vão criar um fundo desse tipo para voltar a ter superávit em transações correntes. Isso seria atingido por meio de financiamentos dados pelo fundo para empresas brasileiras que querem se internacionalizar e aumentar sua competitividade a custos mais baixos do que conseguem no mercado. A dúvida ainda não totalmente esclarecida é de onde viriam os recursos para capitalizar esse fundo na falta de superávits fiscal e de conta corrente?
A opção que no momento parece mais óbvia é que o dinheiro para o fundo soberano venha do excedente de fluxos de capital de outra natureza que entram no país, como investimentos estrangeiros diretos e aplicações que investidores de fora fazem no mercado de ações e títulos locais.
Mas esses não são recursos de brasileiros, é dinheiro que não-residentes estão dispostos a "nos emprestar" porque acham que o retorno que terão aqui será atrativo. Sem aviso prévio podem simplesmente sair do país. Pode-se argumentar que os investimentos estrangeiros diretos para o país são crescentes e têm natureza de longo prazo, portanto não são voláteis. Mas não se pode prever a estabilidade futura desses fluxos. Além disso, investimentos de fora no mercado doméstico de ações e títulos, que são tipicamente de curto prazo e voláteis, representam importante fatia dos fluxos de capital que o Brasil recebe.
A grande pergunta é se faz sentido criar um instrumento de política econômica de longo prazo contando com recursos "emprestados" de investidores estrangeiros e com perfil (em termos de horizonte de tempo) potencialmente diferente. O governo também tem a opção de promover um enorme esforço fiscal para capitalizar parte do fundo soberano. Mas isso suscitaria outras questões, como: o contribuinte brasileiro está disposto a subsidiar empresas? Por que não usar os recursos extras do esforço fiscal para quitar parte da (ainda elevada) dívida pública?
O diagnóstico do governo de que as empresas ainda podem melhorar sua competitividade parece certo. Mas parte desse problema vem da própria qualidade do ambiente de negócios do Brasil, que, em um ranking da EIU (Economist Intelligence Unit) que compara 82 nações nesse quesito, ocupa apenas a 41ª posição. As razões para o resultado medíocre são fartamente conhecidas: infra-estrutura e sistema educacionais deficientes, baixa efetividade política, ambiente tributário nocivo, entre outros problemas. Nada disso se revolverá com fundo soberano.


ÉRICA FRAGA (ericafraga@eiu.com) é editora de América Latina da Economist Intelligence Unit


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