São Paulo, domingo, 11 de julho de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Saindo do atoleiro

LUCIANO COUTINHO

A opção neoliberal do governo FHC -que associou um programa de estabilização oportunista (construído sobre uma combinação nociva de câmbio sobrevalorizado com juro alto) à implementação imprevidente dos mandamentos washingtonianos de privatização, desregulação, abertura comercial e financeira- deixou o país num atoleiro.
A estabilização, obtida pela imposição prolongada de uma taxa de câmbio significativamente sobrevalorizada, provocou um enorme déficit externo financiado pela acumulação de dívidas e de passivos em moeda forte. Essa política, por sua vez, exigiu a sustentação de juros reais elevadíssimos, que fizeram explodir a dívida pública interna. O resultado desastroso foi a vulnerabilização da economia a choques externos e a fragilização fiscal-financeira do Estado. Essa combinação manietou a política macroeconômica à onerosa obrigação de produzir superávits fiscais tão altos quanto o necessário para a reversão do endividamento. Perdeu-se a capacidade de induzir o crescimento econômico e de criar externalidades positivas pela via do investimento público.
As reformas washingtonianas foram conduzidas sem reflexão e sem estratégia. As privatizações foram feitas às pressas para neutralizar sucessivos choques externos sem a construção prévia de marcos regulatórios e de suas instituições, privilegiaram o investidor estrangeiro, provocaram desnacionalizações inúteis e indexaram as tarifas dos serviços. A capacidade de coordenação e de comando sobre os investimentos infra-estruturais ficou ainda mais prejudicada. Disso são exemplos eloqüentes o setor elétrico e as concessões ferroviárias. Em outras áreas nada se fez -exemplo: habitação e saneamento- e o único caso que pode ser apontado como bem-sucedido (mas não imune a críticas) foi o das telecomunicações.
As seqüelas desse quadro de dependência financeira, de desconstrução dos meios e de perda da autonomia do Estado são duradouras e sua superação é onerosa e longa. É preciso ter isso em mente antes de julgar o atual governo, o que não significa absolvê-lo de suas responsabilidades.
A saída dessa crise estrutural requer -obrigatoriamente, excuse-se reforçar- a sustentação de um elevado superávit comercial por vários anos à frente de modo a robustecer a nossa posição externa com um largo colchão de reservas e inequívoca melhoria dos índices de solvência em moeda forte. Esses são passos cruciais para a redução perene do risco Brasil, permitindo uma diminuição significativa e irreversível dos custos de capital das empresas brasileiras. Mas, para tanto, não é suficiente apenas manter a taxa de câmbio em níveis adequadamente depreciados. A obtenção de um desempenho exportador acelerado depende de outras políticas necessárias à criação de nova capacidade produtiva sob padrões mundiais de competitividade.
Mas, além da redução dos riscos regulatórios através da consolidação das agências setoriais e dos respectivos arcabouços legais, é indispensável que o sistema financeiro oferte crédito e capitalização a taxas competitivas. Será um desafio superar a irresistível atração dos ativos do sistema financeiro para os títulos da dívida pública, sem risco e com juros muito elevados. Para isso, simultaneamente à redução gradual da taxa Selic, é necessário estimular a tomada de posições longas para suportar novos investimentos privados de alto retorno em exportação e em infra-estrutura. Essas operações deveriam receber tratamento fiscal e compulsório mais leves: a Comissão de Valores Mobiliários e o Banco Central deveriam empenhar-se no desenvolvimento do crédito e do mercado de capitais.
A criação de instrumentos de funding adequados e suficientes para viabilizar investimentos intensivos em capital e de longa maturação -libertando-os dos estreitos limites do orçamento fiscal- precisa ser efetuada o quanto antes. As parcerias público-privadas, por exemplo, deveriam ser aprovadas com urgência, com garantias, solidez jurídica e liquidez atraente aos investidores. Em certos casos, é necessário empreender reestruturações patrimoniais e de governança para facilitar a estruturação de funding de grande escala como reclama, por exemplo, o caso do sistema Eletrobrás.
Políticas de competitividade por cadeias setoriais são também indispensáveis. Eficiência microeconômica e competitividade são objetivos que só poderão ser alcançados mais velozmente através de políticas industriais e tecnológicas específicas e bem enfocadas. O novo estilo de desenvolvimento pressupõe abertura, integração e concorrência globais, mas requer um esforço simultâneo de construção, cadeia a cadeia, de vantagens competitivas em produtos comercialmente dinâmicos. A economia brasileira pode transitar para um regime de alto crescimento em bases sustentáveis, mas, para chegar lá, é preciso formular, antes, uma estratégia consistente para sair do atoleiro.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).


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