São Paulo, domingo, 11 de julho de 2004

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LUÍS NASSIF

Cartas de noivado

Estou de volta a Poços e a meus fantasmas. No quarto ao lado, as meninas se preparam para dormir. A mãe conversa, beija, acarinha. Depois, faz-se brava para que parem de falar e me sorri com olhar cúmplice. E me vejo com a idade das minhas caçulas, olhando para minha mãe, que provavelmente trocava sorrisos cúmplices com meu pai na hora da bronca noturna.
Na primeira vez em que me levaram ao cinema, foi uma celebração para meus seis ou sete anos. Eles eram altos, elegantes. Segurava na mão de ambos e me sentia importante, orgulhoso da companhia, mas intrigado, tentando captar o que falavam. No cinema, faziam comentários em voz baixa, riam baixinho, com aquela superioridade cúmplice dos adultos diante das crianças. Surpreendo-me ao constatar que, nas cenas que agora lembro, nem 30 anos dona Teresa tinha.
Vejo-me agora em 1990, um ano depois que ela morreu. Meu pai tinha se ido um ano antes dela. Depois dos dois, o apartamento ficou fechado por um ano, sendo visitado apenas pela faxineira. Nenhum dos cinco filhos teve coragem de entrar.
Tirei um final de semana em que a família viajou e mergulhei no apartamento da Abílio Soares, que os acolheu nos últimos dez anos de suas vidas. Lendo o livro do Élio Gáspari, dou-me conta que foi na cozinha daquele apartamento que o comandante do Segundo Exército, general Ednardo -do caso Herzog e Manuel Fiel- , foi chorar, dizendo-se vítima de uma conspiração, quando demitido do comando do Segundo Exército. Mas foi antes de a gente adquirir o apartamento e não ficou nenhum fantasma pendente.
Durante dez anos, o apartamento garantiu boas lembranças, uma espécie de gueto mineiro, com a convivência das meninas mais velhas com duas avós, a vó Tê e a vó Elide, mais o Zé Grandão e a Guida e minha mãe apaziguada, depois de ter olhado de frente o rosto frio da morte, na última operação de safena que pôde fazer, em 1982. Ganhou sete anos de sobrevida e uma sabedoria e paz interior inéditas, que a acompanhariam no curto trajeto final.
Agora revejo o apartamento. Minhas irmãs sempre foram ligadas nos pequenos objetos que lembravam nossos pais. Minha fixação sempre foram fotos e papéis. E foi em uma caixa cuidadosamente guardada que achei o tesouro, a correspondência de noivado de ambos, 15 cartas de minha mãe, 15 respostas sucessivas de meu pai. Com meus olhos de 40 anos, olhei a moça de 22 anos e, uma a uma, a leitura das cartas foi me revelando o antes e explicando o depois.
As letras eram bonitas, os textos, irrepreensíveis. Papai fazia parte da geração dos farmacêuticos intelectualizados da época. Mamãe herdara a facilidade de escrita do vô Issa, que foi transmitida a praticamente todos os filhos e netos. No noivado, papai já era um adulto bem-sucedido, galante, disputado por todas as solteiras de Poços. Nas cartas, via-se a moça sonhadora, explicando que não queria o conforto do casamento, mas a parceria na luta diária. Do outro lado, o noivo apaixonado, reformando a casa onde iriam morar, querendo a companheira em casa. Muitos dos conflitos posteriores estavam ali, desenhados.
Foram 20 e tantos anos de guerra entre ambos. Depois que meu pai caiu, fulminado por um derrame, 15 anos de dedicação diuturna por parte dela. Quando ele morreu, em 1988, julgamos que ela poderia curtir um pouco o resto de vida que teria. Morreu um ano depois, vítima do seu hipercolesterol e das saudades.
Quando terminei a leitura, a noite já entrava pela janela que tomava toda a frente da sala. E reparei que o pacote de cartas permaneceu 41 anos cuidadosamente guardado naquela caixinha.


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