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LUÍS NASSIF
Cartas de noivado
Estou de volta a Poços e a
meus fantasmas. No quarto
ao lado, as meninas se preparam
para dormir. A mãe conversa, beija, acarinha. Depois, faz-se brava
para que parem de falar e me sorri
com olhar cúmplice. E me vejo
com a idade das minhas caçulas,
olhando para minha mãe, que
provavelmente trocava sorrisos
cúmplices com meu pai na hora
da bronca noturna.
Na primeira vez em que me levaram ao cinema, foi uma celebração para meus seis ou sete
anos. Eles eram altos, elegantes.
Segurava na mão de ambos e me
sentia importante, orgulhoso da
companhia, mas intrigado, tentando captar o que falavam. No cinema, faziam comentários em voz
baixa, riam baixinho, com aquela
superioridade cúmplice dos adultos diante das crianças. Surpreendo-me ao constatar que, nas cenas
que agora lembro, nem 30 anos
dona Teresa tinha.
Vejo-me agora em 1990, um ano
depois que ela morreu. Meu pai tinha se ido um ano antes dela. Depois dos dois, o apartamento ficou
fechado por um ano, sendo visitado apenas pela faxineira. Nenhum
dos cinco filhos teve coragem de
entrar.
Tirei um final de semana em
que a família viajou e mergulhei
no apartamento da Abílio Soares,
que os acolheu nos últimos dez
anos de suas vidas. Lendo o livro
do Élio Gáspari, dou-me conta
que foi na cozinha daquele apartamento que o comandante do Segundo Exército, general Ednardo
-do caso Herzog e Manuel Fiel-
, foi chorar, dizendo-se vítima de
uma conspiração, quando demitido do comando do Segundo Exército. Mas foi antes de a gente adquirir o apartamento e não ficou
nenhum fantasma pendente.
Durante dez anos, o apartamento garantiu boas lembranças, uma
espécie de gueto mineiro, com a
convivência das meninas mais velhas com duas avós, a vó Tê e a vó
Elide, mais o Zé Grandão e a Guida e minha mãe apaziguada, depois de ter olhado de frente o rosto
frio da morte, na última operação
de safena que pôde fazer, em 1982.
Ganhou sete anos de sobrevida e
uma sabedoria e paz interior inéditas, que a acompanhariam no
curto trajeto final.
Agora revejo o apartamento.
Minhas irmãs sempre foram ligadas nos pequenos objetos que lembravam nossos pais. Minha fixação sempre foram fotos e papéis. E
foi em uma caixa cuidadosamente
guardada que achei o tesouro, a
correspondência de noivado de
ambos, 15 cartas de minha mãe, 15
respostas sucessivas de meu pai.
Com meus olhos de 40 anos, olhei
a moça de 22 anos e, uma a uma,
a leitura das cartas foi me revelando o antes e explicando o depois.
As letras eram bonitas, os textos,
irrepreensíveis. Papai fazia parte
da geração dos farmacêuticos intelectualizados da época. Mamãe
herdara a facilidade de escrita do
vô Issa, que foi transmitida a praticamente todos os filhos e netos.
No noivado, papai já era um adulto bem-sucedido, galante, disputado por todas as solteiras de Poços.
Nas cartas, via-se a moça sonhadora, explicando que não queria o
conforto do casamento, mas a parceria na luta diária. Do outro lado, o noivo apaixonado, reformando a casa onde iriam morar,
querendo a companheira em casa.
Muitos dos conflitos posteriores estavam ali, desenhados.
Foram 20 e tantos anos de guerra entre ambos. Depois que meu
pai caiu, fulminado por um derrame, 15 anos de dedicação diuturna
por parte dela. Quando ele morreu, em 1988, julgamos que ela poderia curtir um pouco o resto de
vida que teria. Morreu um ano depois, vítima do seu hipercolesterol
e das saudades.
Quando terminei a leitura, a
noite já entrava pela janela que
tomava toda a frente da sala. E reparei que o pacote de cartas permaneceu 41 anos cuidadosamente
guardado naquela caixinha.
E-mail -
Luisnassif@uol.com.br
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