|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OPINIÃO ECONÔMICA
O salto da poupança interna
LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA
Neste ano , o Brasil vai crescer a uma taxa razoável, claramente superior à dos últimos
anos, e manter sua taxa de investimento em relação ao PIB em torno de 19%, embora tenha "perdido", entre 1999 e 2003, 5,63 pontos
percentuais de poupança externa.
De fato, em 1999, o déficit em conta corrente alcançou 4,81% do
PIB, contra um superávit em conta corrente de 0,82% do PIB em
2003. Como explicar esse fato? Como a poupança interna foi capaz
de crescer tão rapidamente e substituir a poupança externa ou déficit em conta corrente que só nos
endividava, de forma que a poupança total (que é igual ao investimento) ficou aproximadamente
no mesmo nível?
De acordo com a ortodoxia convencional, com a política econômica que vem de Washington, depois da crise da dívida externa os
países em desenvolvimento "não
teriam recursos para financiar seu
desenvolvimento" e, portanto, deveriam recorrer à poupança externa. Enquanto adotou essa estratégia equivocada, o Brasil não cresceu, apenas consumiu e se endividou. A poupança externa ou déficit em conta corrente aumentou
extraordinariamente após 1994,
como queria essa ortodoxia, mas o
investimento se manteve relativamente estável, em torno dos 19%
acima referidos, porque a poupança externa (que, sendo sinônimo
de déficit em conta corrente, aumenta, por definição, a dívida total, financeira e patrimonial do
país) era compensada pelo aumento do consumo e pela redução
da poupança interna.
Por que ocorria essa compensação? Porque, quando estão entrando mais recursos em um país
do que saindo, a taxa de câmbio
de equilíbrio estará valorizada em
relação àquela que prevaleceria se
o déficit em conta corrente fosse
zero. Ora, uma taxa de câmbio assim artificialmente valorizada eleva também artificialmente os salários reais e, em conseqüência, o
consumo, reduzindo a poupança
interna. Os salários nominais permanecem constantes, mas, como o
preço dos bens comerciáveis, que
dependem do dólar, cai em reais, a
capacidade de compra dos assalariados, principalmente dos de classe média, cresce correspondentemente.
A partir da crise de balanço de
pagamentos de 1998, a taxa de
câmbio passou por duas fases de
depreciação real, que corrigiram
grande parte dessa valorização artificial. Em janeiro de 1999, a taxa
de câmbio flutuou e sofreu uma
primeira depreciação. Em 2002,
uma segunda crise de balanço de
pagamentos promoveu nova depreciação real. O valor do dólar,
como é comum nesses casos, cresceu excessivamente (ocorreu um
"overshooting") e alcançou quase
R$ 4,00, mas, em seguida, com a
volta da confiança, caiu e teria
caído mais não fosse o governo ter,
corretamente, a partir de julho de
2003, administrado a taxa de
câmbio para que ficasse em torno
de R$ 3,00, garantindo-se, assim, a
depreciação real.
As duas depreciações tiveram
como conseqüência um aumento
temporário da inflação. Mais importante, porém, é o fato de que
elas promoveram uma mudança
dos preços relativos dos bens comercializáveis em relação aos
não-comercializáveis. Em conseqüência, o salário médio, ou seja, o
preço do bem não-comercializável
por excelência, da força de trabalho, caiu nesse período. A conseqüente queda do rendimento dos
trabalhadores, que, segundo a última Pnad, foi de 18,8% entre 1996
e 2003, permitiu a diminuição do
consumo e o aumento da poupança interna.
Um segundo igualmente importante -e também relacionado
com a queda do salário real- foi
a redução do déficit público operacional (e, portanto, o aumento relativo da poupança pública) em
2,5 pontos percentuais de 1999 para 2003.
Um terceiro fator que poderia
ter explicado os 5,63 pontos percentuais do PIB de aumento da
poupança interna entre 1999 e
2003 poderia ter sido a alta do investimento. Em situação de desemprego e capacidade ociosa, a
poupança é conseqüência do aumento do investimento, mas já vimos que este permaneceu constante.
Esse salto da poupança interna
demonstrou que o país pode perfeitamente crescer sem poupança
externa. Os investimentos diretos e
os financiamentos adicionais à
simples rolagem da dívida velha
não são "necessários" ao desenvolvimento, como pretende a ortodoxia convencional. Pelo contrário,
os financiamentos adicionais são
prejudiciais, ao aumentar o consumo -e não o investimento- e
agravar a fragilidade externa do
país, a não ser que haja grandes
oportunidades de investimentos.
Quanto aos investimentos diretos,
são bem-vindos, não pelos recursos adicionais que trazem (que só
devemos usar para aumentar reservas ou reduzir a dívida externa,
como fazem os países asiáticos dinâmicos), mas na medida em que
tragam tecnologia e abram novos
mercados.
Estou convencido de que a crítica ao crescimento com poupança
externa é hoje uma tarefa tão importante para os economistas brasileiros e latino-americanos como
foi, nos anos 40 e 50, a crítica da lei
das vantagens comparativas. Naquela época, o objetivo era proteger a indústria infante. Hoje, é
conservar o controle sobre a taxa
de câmbio e impedir que ela se valorize artificialmente pela entrada
de capitais e pelo aumento do endividamento. A história do desenvolvimento é muito clara a respeito: o capital se faz em casa, os países não têm alternativa senão crescer com seus próprios recursos. Se
já não estiverem altamente endividados e as oportunidades de lucro forem grandes, a valorização
do câmbio que a entrada de capitais implica pode não se transformar em consumo. Mas esses são
momentos raros na vida das nações.
Em 1994, neutralizamos a inércia inflacionária e estabilizamos
os preços. Nestes últimos cinco
anos, realizamos uma coisa que a
ortodoxia convencional julgava
impossível -ajustamos nossas
contas externas em termos de fluxo e aumentamos a poupança doméstica. Para alcançar o verdadeiro equilíbrio macroeconômico,
resta, agora, reduzir a taxa de juros Selic para níveis civilizados. A
ortodoxia convencional novamente assegura que isso é impossível, a não ser no longo prazo, depois que todas as reformas tiverem
sido realizadas... Veremos, porém,
em outro artigo, que o grande
ajuste externo tornou agora viável
uma redução da taxa de juros básica do Banco Central em um prazo relativamente curto.
Luiz Carlos Bresser-Pereira, 70, é professor de economia e de teoria política da Fundação Getúlio Vargas. Foi ministro da Fazenda, da Administração Federal e Reforma do Estado, e da Ciência e Tecnologia. Escreve às segundas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.
Internet: www.bresserpereira.org.br
E-mail -
bresserpereira@uol.com.br
Texto Anterior: Diploma não garante emprego, revela estudo Próximo Texto: Dicas/Folhainvest - Ações: Em semana de poucas oscilações, instituições não alteram carteiras Índice
|