São Paulo, segunda-feira, 11 de outubro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

O salto da poupança interna

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

Neste ano , o Brasil vai crescer a uma taxa razoável, claramente superior à dos últimos anos, e manter sua taxa de investimento em relação ao PIB em torno de 19%, embora tenha "perdido", entre 1999 e 2003, 5,63 pontos percentuais de poupança externa. De fato, em 1999, o déficit em conta corrente alcançou 4,81% do PIB, contra um superávit em conta corrente de 0,82% do PIB em 2003. Como explicar esse fato? Como a poupança interna foi capaz de crescer tão rapidamente e substituir a poupança externa ou déficit em conta corrente que só nos endividava, de forma que a poupança total (que é igual ao investimento) ficou aproximadamente no mesmo nível?
De acordo com a ortodoxia convencional, com a política econômica que vem de Washington, depois da crise da dívida externa os países em desenvolvimento "não teriam recursos para financiar seu desenvolvimento" e, portanto, deveriam recorrer à poupança externa. Enquanto adotou essa estratégia equivocada, o Brasil não cresceu, apenas consumiu e se endividou. A poupança externa ou déficit em conta corrente aumentou extraordinariamente após 1994, como queria essa ortodoxia, mas o investimento se manteve relativamente estável, em torno dos 19% acima referidos, porque a poupança externa (que, sendo sinônimo de déficit em conta corrente, aumenta, por definição, a dívida total, financeira e patrimonial do país) era compensada pelo aumento do consumo e pela redução da poupança interna.
Por que ocorria essa compensação? Porque, quando estão entrando mais recursos em um país do que saindo, a taxa de câmbio de equilíbrio estará valorizada em relação àquela que prevaleceria se o déficit em conta corrente fosse zero. Ora, uma taxa de câmbio assim artificialmente valorizada eleva também artificialmente os salários reais e, em conseqüência, o consumo, reduzindo a poupança interna. Os salários nominais permanecem constantes, mas, como o preço dos bens comerciáveis, que dependem do dólar, cai em reais, a capacidade de compra dos assalariados, principalmente dos de classe média, cresce correspondentemente.
A partir da crise de balanço de pagamentos de 1998, a taxa de câmbio passou por duas fases de depreciação real, que corrigiram grande parte dessa valorização artificial. Em janeiro de 1999, a taxa de câmbio flutuou e sofreu uma primeira depreciação. Em 2002, uma segunda crise de balanço de pagamentos promoveu nova depreciação real. O valor do dólar, como é comum nesses casos, cresceu excessivamente (ocorreu um "overshooting") e alcançou quase R$ 4,00, mas, em seguida, com a volta da confiança, caiu e teria caído mais não fosse o governo ter, corretamente, a partir de julho de 2003, administrado a taxa de câmbio para que ficasse em torno de R$ 3,00, garantindo-se, assim, a depreciação real.
As duas depreciações tiveram como conseqüência um aumento temporário da inflação. Mais importante, porém, é o fato de que elas promoveram uma mudança dos preços relativos dos bens comercializáveis em relação aos não-comercializáveis. Em conseqüência, o salário médio, ou seja, o preço do bem não-comercializável por excelência, da força de trabalho, caiu nesse período. A conseqüente queda do rendimento dos trabalhadores, que, segundo a última Pnad, foi de 18,8% entre 1996 e 2003, permitiu a diminuição do consumo e o aumento da poupança interna.
Um segundo igualmente importante -e também relacionado com a queda do salário real- foi a redução do déficit público operacional (e, portanto, o aumento relativo da poupança pública) em 2,5 pontos percentuais de 1999 para 2003.
Um terceiro fator que poderia ter explicado os 5,63 pontos percentuais do PIB de aumento da poupança interna entre 1999 e 2003 poderia ter sido a alta do investimento. Em situação de desemprego e capacidade ociosa, a poupança é conseqüência do aumento do investimento, mas já vimos que este permaneceu constante.
Esse salto da poupança interna demonstrou que o país pode perfeitamente crescer sem poupança externa. Os investimentos diretos e os financiamentos adicionais à simples rolagem da dívida velha não são "necessários" ao desenvolvimento, como pretende a ortodoxia convencional. Pelo contrário, os financiamentos adicionais são prejudiciais, ao aumentar o consumo -e não o investimento- e agravar a fragilidade externa do país, a não ser que haja grandes oportunidades de investimentos. Quanto aos investimentos diretos, são bem-vindos, não pelos recursos adicionais que trazem (que só devemos usar para aumentar reservas ou reduzir a dívida externa, como fazem os países asiáticos dinâmicos), mas na medida em que tragam tecnologia e abram novos mercados.
Estou convencido de que a crítica ao crescimento com poupança externa é hoje uma tarefa tão importante para os economistas brasileiros e latino-americanos como foi, nos anos 40 e 50, a crítica da lei das vantagens comparativas. Naquela época, o objetivo era proteger a indústria infante. Hoje, é conservar o controle sobre a taxa de câmbio e impedir que ela se valorize artificialmente pela entrada de capitais e pelo aumento do endividamento. A história do desenvolvimento é muito clara a respeito: o capital se faz em casa, os países não têm alternativa senão crescer com seus próprios recursos. Se já não estiverem altamente endividados e as oportunidades de lucro forem grandes, a valorização do câmbio que a entrada de capitais implica pode não se transformar em consumo. Mas esses são momentos raros na vida das nações.
Em 1994, neutralizamos a inércia inflacionária e estabilizamos os preços. Nestes últimos cinco anos, realizamos uma coisa que a ortodoxia convencional julgava impossível -ajustamos nossas contas externas em termos de fluxo e aumentamos a poupança doméstica. Para alcançar o verdadeiro equilíbrio macroeconômico, resta, agora, reduzir a taxa de juros Selic para níveis civilizados. A ortodoxia convencional novamente assegura que isso é impossível, a não ser no longo prazo, depois que todas as reformas tiverem sido realizadas... Veremos, porém, em outro artigo, que o grande ajuste externo tornou agora viável uma redução da taxa de juros básica do Banco Central em um prazo relativamente curto.


Luiz Carlos Bresser-Pereira, 70, é professor de economia e de teoria política da Fundação Getúlio Vargas. Foi ministro da Fazenda, da Administração Federal e Reforma do Estado, e da Ciência e Tecnologia. Escreve às segundas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.
Internet: www.bresserpereira.org.br
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