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ARTIGO
Redistribuição de ativos não deve abalar o mundo
GILSON SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Dinheiro de graça só alguns
privilegiados podem ter. Foi
o que os bancos japoneses ganharam do seu banco central, desde
2001 e principalmente após 2003:
rios de dinheiro a juros zero. A heterodoxia, conhecida pela esquisita sigla Zirp ("zero interest rate
policy"), está próxima do fim.
Quão próxima, eis a questão.
O excesso de reservas bancárias
sobre o que seriam níveis "normais" chegou ao Japão a algo de
uma magnitude espetacular, como revela a comparação com os
EUA dos anos 1930 (veja os gráficos). O Banco do Japão, que nos
anos 90 teve que lidar com uma
bolha no mercado imobiliário,
substituiu o problema por uma
bolha de liquidez bancária.
Foi uma tentativa de deixar o
crédito tão barato que os investidores se animassem a gastar mais,
tomar crédito e promover o fim
da deflação e da estagnação.
Se no Brasil e na América Latina
o problema em geral é de inflação
por falta de investimentos, o Japão tem desafio simétrico: deflação por excesso de investimentos.
Quando os preços caem, o consumidor prefere esperar para
comprar depois. Na deflação, isso
é racional, pois significa sempre
comprar cada vez mais barato.
Para o empresário, o adiamento
na compra vira alta no estoque. O
melhor é nem produzir ou investir para aumentar a capacidade
produtiva. O emprego cai, deprime ainda mais o consumo, gera
mais queda de preços.
O Banco do Japão jogou os juros
no chão para quebrar essa lógica.
Estimulou também o carregamento de dinheiro gratuito para
destinos em que os juros fossem
mais promissores, por exemplo
ativos financeiros no mercado
norte-americano, inclusive títulos
da dívida pública dos Estados
Unidos. E para mercados emergentes, como o Brasil de juros estratosféricos.
A recuperação recente da atividade econômica e dos salários, assim como os primeiros sinais de
uma saudável pressão inflacionária no Japão, levou o Banco do Japão a decretar o fim da heterodoxia. As autoridades admitem que
voltarão a subir os juros. Mas não
dizem quando o farão.
Dificuldade de interpretação
Há polêmica sobre o roteiro de
abandono da Zirp. Há dúvidas sobre os indicadores recentes. O
choque dos preços do petróleo
"ajudou" o Japão a sair da deflação, mas é um fenômeno que tende a ser superado no médio prazo.
Há dúvida sobre a força de outras
fontes inflacionárias, supostamente mais saudáveis.
Fugir da deflação é um objetivo
de consenso, mas definir o que é
uma inflação "saudável" é tão polêmico no Japão quanto em Brasília. Segundo o Banco do Japão,
chegar a 2% de inflação anual é
positivo. O ritmo para chegar lá é
um mistério.
Finalmente, o fato é que a mudança anunciada na semana passada é um gradualíssimo relaxamento da oferta monetária, mas
não o início do aumento da taxa
de juros.
A maioria dos analistas acredita
que a taxa subirá apenas no segundo semestre de 2006, e alguns
esperam o fim da Zirp somente
em 2007.
Paradoxo da liquidez global
Os mercados financeiros precisam sempre antecipar o futuro,
identificar cenários e refazer
apostas. Mesmo que os juros não
subam até 2007, é preciso mudar
o "mix" carregado pelas instituições financeiras desde já.
A União Européia e os EUA já
vêm promovendo altas nas suas
taxas de juros. Para os mais pessimistas, a adesão do Japão à alta
dos juros provocará uma crise
global de liquidez. Seria o final de
um período de excepcional crescimento apesar das altas do petróleo e dos estragos que a crise financeira asiática produziu (em
benefício da China).
Os mais otimistas contam com
a sabedoria gradualista dos banqueiros centrais, temperada pela
pilotagem quase em câmera lenta
da política monetária japonesa.
Sem ruptura, sem elevação
abrupta dos juros, dando tempo
para a inflação benigna aumentar
os lucros das empresas e reanimar
seus planos de investimento.
Haveria uma redução do crédito disponível a custo muito baixo,
mas num contexto de recuperação da produção, do consumo e
do investimento. Eis o paradoxo:
aumento da liquidez global apesar da alta dos juros nos países
centrais. Os preços dos ativos financeiros não entrariam em queda, mas em alta.
Ocorreria uma redistribuição
de ativos e moedas, favorável aos
circuitos produtivos, com superação de anomalias financeiras e
cambiais. Nunca uma contração.
Vulnerabilidade brasileira
Autoridades em Brasília e vários
economistas têm alardeado o robustecimento do setor externo
brasileiro diante de alterações nos
níveis e distribuição da liquidez
global.
De fato, as moedas dos países
emergentes estão entre as principais beneficiadas pelos fluxos internacionais dos últimos anos. A
alta coordenada de juros orquestrada entre Banco do Japão, Fed e
Banco Central Europeu em tese
pode reduzir a atratividade dos
investimentos nos emergentes.
Mas os novos fluxos de ativos financeiros entre a economia japonesa e a norte-americana podem
confirmar um modelo de crescimento com pouso suave ("soft
landing"). A redistribuição de ativos pode não abalar o mundo. Ou
seja, pode não estar tão próximo o
teste radical e decisivo da vulnerabilidade externa brasileira.
Gilson Schwartz, 46, professor da USP,
é autor do livro "Lições da Economia Japonesa" (2002) e diretor da Cidade do
Conhecimento.
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