São Paulo, domingo, 12 de março de 2006

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ARTIGO

Redistribuição de ativos não deve abalar o mundo

GILSON SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Dinheiro de graça só alguns privilegiados podem ter. Foi o que os bancos japoneses ganharam do seu banco central, desde 2001 e principalmente após 2003: rios de dinheiro a juros zero. A heterodoxia, conhecida pela esquisita sigla Zirp ("zero interest rate policy"), está próxima do fim. Quão próxima, eis a questão.
O excesso de reservas bancárias sobre o que seriam níveis "normais" chegou ao Japão a algo de uma magnitude espetacular, como revela a comparação com os EUA dos anos 1930 (veja os gráficos). O Banco do Japão, que nos anos 90 teve que lidar com uma bolha no mercado imobiliário, substituiu o problema por uma bolha de liquidez bancária.
Foi uma tentativa de deixar o crédito tão barato que os investidores se animassem a gastar mais, tomar crédito e promover o fim da deflação e da estagnação.
Se no Brasil e na América Latina o problema em geral é de inflação por falta de investimentos, o Japão tem desafio simétrico: deflação por excesso de investimentos.
Quando os preços caem, o consumidor prefere esperar para comprar depois. Na deflação, isso é racional, pois significa sempre comprar cada vez mais barato. Para o empresário, o adiamento na compra vira alta no estoque. O melhor é nem produzir ou investir para aumentar a capacidade produtiva. O emprego cai, deprime ainda mais o consumo, gera mais queda de preços.
O Banco do Japão jogou os juros no chão para quebrar essa lógica. Estimulou também o carregamento de dinheiro gratuito para destinos em que os juros fossem mais promissores, por exemplo ativos financeiros no mercado norte-americano, inclusive títulos da dívida pública dos Estados Unidos. E para mercados emergentes, como o Brasil de juros estratosféricos.
A recuperação recente da atividade econômica e dos salários, assim como os primeiros sinais de uma saudável pressão inflacionária no Japão, levou o Banco do Japão a decretar o fim da heterodoxia. As autoridades admitem que voltarão a subir os juros. Mas não dizem quando o farão.

Dificuldade de interpretação
Há polêmica sobre o roteiro de abandono da Zirp. Há dúvidas sobre os indicadores recentes. O choque dos preços do petróleo "ajudou" o Japão a sair da deflação, mas é um fenômeno que tende a ser superado no médio prazo. Há dúvida sobre a força de outras fontes inflacionárias, supostamente mais saudáveis.
Fugir da deflação é um objetivo de consenso, mas definir o que é uma inflação "saudável" é tão polêmico no Japão quanto em Brasília. Segundo o Banco do Japão, chegar a 2% de inflação anual é positivo. O ritmo para chegar lá é um mistério.
Finalmente, o fato é que a mudança anunciada na semana passada é um gradualíssimo relaxamento da oferta monetária, mas não o início do aumento da taxa de juros.
A maioria dos analistas acredita que a taxa subirá apenas no segundo semestre de 2006, e alguns esperam o fim da Zirp somente em 2007.

Paradoxo da liquidez global
Os mercados financeiros precisam sempre antecipar o futuro, identificar cenários e refazer apostas. Mesmo que os juros não subam até 2007, é preciso mudar o "mix" carregado pelas instituições financeiras desde já.
A União Européia e os EUA já vêm promovendo altas nas suas taxas de juros. Para os mais pessimistas, a adesão do Japão à alta dos juros provocará uma crise global de liquidez. Seria o final de um período de excepcional crescimento apesar das altas do petróleo e dos estragos que a crise financeira asiática produziu (em benefício da China).
Os mais otimistas contam com a sabedoria gradualista dos banqueiros centrais, temperada pela pilotagem quase em câmera lenta da política monetária japonesa. Sem ruptura, sem elevação abrupta dos juros, dando tempo para a inflação benigna aumentar os lucros das empresas e reanimar seus planos de investimento.
Haveria uma redução do crédito disponível a custo muito baixo, mas num contexto de recuperação da produção, do consumo e do investimento. Eis o paradoxo: aumento da liquidez global apesar da alta dos juros nos países centrais. Os preços dos ativos financeiros não entrariam em queda, mas em alta.
Ocorreria uma redistribuição de ativos e moedas, favorável aos circuitos produtivos, com superação de anomalias financeiras e cambiais. Nunca uma contração.

Vulnerabilidade brasileira
Autoridades em Brasília e vários economistas têm alardeado o robustecimento do setor externo brasileiro diante de alterações nos níveis e distribuição da liquidez global.
De fato, as moedas dos países emergentes estão entre as principais beneficiadas pelos fluxos internacionais dos últimos anos. A alta coordenada de juros orquestrada entre Banco do Japão, Fed e Banco Central Europeu em tese pode reduzir a atratividade dos investimentos nos emergentes.
Mas os novos fluxos de ativos financeiros entre a economia japonesa e a norte-americana podem confirmar um modelo de crescimento com pouso suave ("soft landing"). A redistribuição de ativos pode não abalar o mundo. Ou seja, pode não estar tão próximo o teste radical e decisivo da vulnerabilidade externa brasileira.


Gilson Schwartz, 46, professor da USP, é autor do livro "Lições da Economia Japonesa" (2002) e diretor da Cidade do Conhecimento.


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