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São Paulo, sábado, 12 de abril de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Cem dias e sem Saddam

GESNER OLIVEIRA

Foram cem dias de governo Lula e três semanas de guerra no Iraque. A combinação de tais eventos afastou os piores cenários, mas os riscos à frente desautorizam a euforia.
Foram cem dias de governo Lula sem surpresas. Essa foi a grande surpresa. O PT abandonou o programa de ruptura e assumiu compromisso com a política macroeconômica do segundo mandato de FHC: câmbio flutuante, austeridade fiscal e o regime de metas inflacionárias.
Era previsível que o governo Lula teria de ser mais realista do que o rei. O PT não tinha reputação antiinflacionária. Pelo contrário, havia sido contra "tudo isso que está aí". Logo, teve de pagar um custo extra para demonstrar bom comportamento e conquistar os mercados.
Os efeitos macroeconômicos foram positivos mesmo depurados os exageros da propaganda oficial. A economia voltou a operar com níveis de risco do período anterior ao segundo turno das eleições, o acesso aos recursos externos foi restabelecido e a pressão inflacionária arrefeceu. Não é pouco.
Persiste, contudo, uma visão equivocada de que a austeridade fiscal e monetária constitui uma fase passageira para vencer dificuldades conjunturais, uma espécie de purgatório antes de ingressar no paraíso.
É uma ilusão imaginar que tudo será diferente depois de um "dia D" da aprovação das reformas previdenciária e tributária. Tais reformas constituem processos longos e complexos, cujo sucesso depende de permanente disciplina macro.
É igualmente ilusório imaginar que a política macro continuará angariando apoio político com a renda per capita estagnada. Uma eventual retomada do crescimento recolocará a restrição de recursos externos. Assim, a promoção do comércio exterior e das exportações em particular não é tarefa que possa ser deixada para o segundo tempo.
Do lado da infra-estrutura, que hoje constitui outra restrição importante para o crescimento, o bombardeio do governo contra as agências reguladoras é incompreensível. Só faria sentido se o governo planejasse reestatizar a economia, algo inexequível e contraditório com a política macro.
Assim, o discurso contra a autonomia das agências serve apenas para piorar as expectativas de investimento e dessa forma acentuar os problemas de oferta da economia.
Se o governo levar a sério algumas manifestações de que seria necessário aumentar a competição em alguns segmentos, como o de telecomunicações, seria indispensável aumentar -e não reduzir- o grau de autonomia das agências. O modelo regulatório oficial não fechou até agora.
No plano externo, foram 21 dias de demonstração de poderio bélico das forças anglo-americanas contra o Iraque. Isso foi suficiente para liquidar a ditadura de Saddam Hussein. E abalar fortemente as instituições multilaterais, como a OMC (Organização Mundial do Comércio).
Não bastassem as dificuldades da negociação da Rodada Doha mesmo antes do conflito do Iraque, a disposição para concessões é hoje mais reduzida. Isso desacelera automaticamente outras iniciativas, como a da Alca, reduzindo o potencial de expansão do comércio como resultado de liberalização. Por sua vez, os países da OCDE não apresentam sinais de retomada que pudessem gerar efeitos multiplicadores positivos sobre a economia mundial.
Assim, o ambiente externo dos próximos anos parece mais próximo da sucessão de crises da segunda metade dos anos 90 do que da grande liquidez internacional do primeiro mandato de FHC. Sem margem de manobra e sem direito a barbeiragens.


Gesner Oliveira, 46, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-EAESP, sócio-diretor da Tendências e ex-presidente do Cade.

Internet: www.gesneroliveira.com.br
E-mail - gesner@fgvsp.br


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