São Paulo, segunda, 12 de maio de 1997.



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OPINIÃO ECONÔMICA
Idéias de esquerda

JOÃO SAYAD
Partidos de esquerda e intelectuais têm discutido novas idéias e programas. A tarefa não é fácil.
O bem-estar da inflação baixa, as novas tecnologias de comunicação e a ideologia ainda são muito fortes para que se possa ver com clareza os problemas e a crueldade do novo mundo que começou há mais ou menos 20 anos. Mesmo assim, a vitória dos trabalhistas na Inglaterra mostra que o tempo passa e as idéias mudam.
No Brasil, a tarefa é mais difícil ainda. A inflação caiu há apenas dois anos. E a acusação injusta de que as superinflações eram resultado dos gastos do governo, dos sindicatos ou da indústria brasileira, ou dos políticos, ainda são muito poderosas e convincentes. Os problemas de desemprego e exclusão são tidos como inevitáveis e os críticos são acusados de inveja ou muita ambição.
O tempo também passará por aqui e novas idéias surgirão. Enquanto isso, podemos pensar, provocar e especular sobre o que deveria constar ou não constar dos programas dos partidos de esquerda.
1) Não deveriam se preocupar com a organização da produção: se as empresas são privadas ou públicas, se os preços são livres ou controlados e assim por diante.
As economias de mercado resolveram bem como produzir minérios, arroz, hortaliças, micros e telefones celulares. Determinam bem os preços e as quantidades destas coisas. O assunto não parece importante.
2) Não deveria se preocupar com a economia.
A economia capitalista é máquina muito poderosa e eficaz para produzir cada vez mais, mais eficientemente. Esta é a sua força. E a sua fraqueza.
Se você contrata um exército de mercenários competentes, o problema não é ganhar a guerra, mas restabelecer a paz. Se você tem um cão de guarda feroz e bem treinado, o problema deixa de ser o ladrão e passa a ser o risco de o cão morder seu filho.
O problema da economia capitalista é mais ou menos a mesma coisa. Não devemos nos preocupar com a produção de mais isto ou aquilo ou com o emprego. Na realidade, estamos chegando a um ponto em que o problema é segurar essa máquina de crescimento. Ou, em outras palavras, perceber que o mundo, Brasil inclusive, chega a uma fase em que escassez não é problema. Sobram produtos agrícolas, sobram produtos industriais, sobram trabalhadores.
A única escassez que atemoriza o mundo neste momento é a escassez do que não pode ser produzido: meio ambiente, beleza natural, água e ar.
A dificuldade não é como organizar a produção para produzir mais. Mas arranjar outro motivo para as nossas energias que continuam dedicadas a produzir, acumular e economizar.
3) Se isto é verdade, não adianta criar mais empregos. Precisamos de menos empregos: trabalhar menos com salários iguais.
Paradoxalmente, precisamos de mais trabalho, num sentido diferente da palavra. Trabalho no sentido de atividade criativa, que traga satisfação e realização pessoal.
4) A verdadeira dificuldade a enfrentar são os problemas de caráter público. O período de globalização que estamos vivendo pode ser caracterizado de várias formas. A característica mais marcante é a falta de legitimidade para qualquer atividade pública: a política, o partido, o sindicato, a nação.
Os problemas a enfrentar, especialmente no Brasil, são todos de caráter público. Educação de todos os níveis, habitação, planejamento urbano, distribuição de renda.
Os partidos de direita acreditam que tudo isto pode ser resolvido por ONGs voluntárias e que usam muito pouco dinheiro. Não é realista: precisamos de leis e soluções universais.
5) Pensar grande. Se o problema da escassez é cada vez mais problema artificial, criado, não há por que pensar pequeno: hortas comunitárias, leite de soja, minifúndio de subsistência.
Na realidade, os problemas econômicos do mundo são problemas criados pela idéia de escassez. Ficamos cada vez mais ricos e cada vez mais pão- duros.
Se a esquerda quer renovar e repensar os problemas do mundo, é preciso antes se livrar dessas restrições artificiais. Os alunos devem estudar em tempo integral, como disse Darcy Ribeiro, e por mais tempo. Os trabalhadores devem se aposentar mais cedo. Os menos capazes e eficientes podem ser perdoados e ajudados. Afinal de contas sobra mão-de-obra.
A universidade deve pesquisar com mais liberdade e com horizonte de tempo mais amplo. As habitações populares podem ser maiores, as rodovias mais amplas, o transporte público melhor e mais barato, as férias mais longas, o trabalho mais agradável e assim por diante.
Parecem coisas do mundo da Lua. Por isso são sugestões para partidos de esquerda: representam anseios e sonhos por mundo melhor.


João Sayad, 51, economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney), escreve às segundas-feiras nesta coluna.
E-mail:jsayad@ibm.net.br








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