São Paulo, domingo, 12 de setembro de 2004

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RECEITA HETERODOXA

Paul Samuelson diz que EUA não ganharão sempre com prática em voga; colegas refutam tese

Nobel vê perdas com terceirização externa

STEVE LOHR
DO "NEW YORK TIMES

Aos 89 anos, Paul Samuelson, economista laureado com o Prêmio Nobel e professor emérito do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusets, na sigla em inglês), continua a exibir grande vigor intelectual e grande capacidade de contestar e divertir.
Sua divergência quanto ao consenso econômico dominante com relação à terceirização externa e à globalização será publicada neste mês por uma revista respeitada, envolta em frases inteligentes e equações teóricas, mas claramente entendida como um ataque à ala ortodoxa de sua profissão: o chairman do Fed (Federal Reserve, banco central dos Estados Unidos), Alan Greenspan; Gregory Mankiw, presidente do Conselho de Assessores Econômicos da Casa Branca; e Jagdish Bhagwati, importante economista internacional e professor da Universidade Colúmbia.
Esses pesos-pesados da economia e outros são acusados por Samuelson de perpetrar "uma mentira polêmica e popular".
Popular entre os economistas, claro. A mentira em questão, afirma Samuelson em artigo para o "Journal of Economic Perspectives", é a suposição de que as leis da economia determinam que a economia norte-americana se beneficiará, no longo prazo, de todas as formas de comércio internacional, incluindo a terceirização de serviços para outros países, como centrais de atendimento telefônico e divisões de criação de software.
É claro, escreve Samuelson, que os economistas ortodoxos reconhecem que certas pessoas ganharão e outras perderão, em curto prazo, mas rapidamente acrescentam que "os ganhos dos beneficiados, nos Estados Unidos, serão grandes o bastante para mais que compensar as perdas dos prejudicados".
Essa suposição, em geral aceita pelos economistas, é "uma espécie de falácia", porque "está completamente errada no que tange a estabelecer que o número de beneficiados sempre superará o de prejudicados".
Em outras palavras, o comércio internacional nem sempre resultará em vantagem para a economia norte-americana, de acordo com Samuelson.
Em entrevista concedida na semana passada, Samuelson disse ter escrito o artigo para "esclarecer as coisas", porque "a defesa ortodoxa da globalização expõe o problema de maneira simplificada demais". Samuelson, que se define como "democrata de centro", diz que sua análise não inclui uma receita política e enfatizou que não tinha por objetivo justificar medidas protecionistas.
Até agora, disse ele, os ganhos auferidos pelos EUA superaram as perdas, no caso do comércio internacional, mas nada garante que essa situação se perpetue.
Em seu artigo, Samuelson começa apontando a inquietação que muitos norte-americanos sentem com relação aos seus empregos e salários hoje, especialmente com a ascensão das economias chinesa e indiana, baseada em baixos salários, trabalhadores cada vez mais capacitados e conhecimentos tecnológicos cada vez maiores. "Trata-se de uma questão quente, agora e para a próxima década. Não vai desaparecer", escreve.
O ensaio é o esforço de Samuelson para contribuir com uma visão econômica balanceada para o debate político referente à terceirização e ao comércio internacional. O "Journal of Economic Perspectives", revista trimestral publicada pela American Economic Association, tem modesta circulação de 21 mil exemplares, mas é bastante influente em seu campo.
De fato, Bhagwati e dois colegas, Arvind Panagariya, professor de economia na Universidade Colúmbia, e T. N. Srinivasan, professor de economia na Universidade Yale, já submeteram à revista um artigo ("The Muddles Over Outsourcing" [Confusões quanto à terceirização]) que serve parcialmente como refutação ao trabalho de Samuelson.
As críticas de Samuelson ganham peso adicional dada a reputação do autor.
"Ele inventou muitos dos modelos econômicos que todo mundo usa", apontou Timothy Taylor, editor-executivo do "Journal of Economic Perspectives".
Para gerações de alunos de graduação, desde 1948, estudar economia implica usar um livro de Samuelson, agora em sua 18ª edição. (Desde a 12ª edição, o trabalho conta com a colaboração de William Nordhaus, economista da Universidade Yale). Porque ele lecionou no MIT por seis décadas, as fileiras de elite dos economistas estão repletas de ex-alunos seus, entre os quais Bhagwati e Mankiw.
De acordo com Samuelson, um país de baixos salários que esteja melhorando rapidamente sua tecnologia, como a Índia ou a China, tem o potencial de alterar os termos de comércio com os Estados Unidos em áreas como as centrais de atendimento telefônico e a produção de software de forma que reduziria a renda per capita norte-americana. "O salário real no novo mercado de trabalho termina reduzido em razão dessa visão quanto à dinâmica do livre comércio", escreveu Samuelson.
Mas comprar mais barato não significa que os serviços de atendimento telefônico e produção de software instalados no exterior reduzem os custos dos insumos para diversos setores, gerando benefícios líquidos para a economia? Não necessariamente, explica Samuelson. Para simplificar as coisas, disse ele na entrevista, "se você é capaz de comprar produtos 20% mais baratos no Wal-Mart, isso ainda assim não quer dizer que as perdas de salários estão sendo compensadas".
A difusão mundial da computação de baixo custo e de comunicações via internet derruba as velhas barreiras geográficas entre os mercados de trabalho, apontou, e pode acelerar a pressão sobre os salários em vastas porções do setor de serviços. "Se você não acredita que isso mudaria a média salarial norte-americana, então você acredita na fadinha dos dentes", disse Samuelson.
O artigo, acrescentou o economista, não é uma refutação da teoria de David Ricardo sobre a vantagem comparativa, apresentada em 1817 e vista como a Carta Magna da economia internacional. A teoria alega que o livre comércio permite que as economias se beneficiem da eficiência gerada pela especialização mundial. Samuelson disse que ele estava apenas "interpretando de maneira plena e correta a teoria da vantagem comparativa proposta por Ricardo". Sua interpretação, insiste ele, inclui algumas "importantes correções" aos argumentos dos defensores da globalização.
Esse tipo de correção não é novidade na carreira de Samuelson. Ele lembrou que, em contexto diferente, tratou de tema semelhante já em 1972, em palestra proferida pouco depois de receber o Nobel e intitulada "O Comércio Internacional para um País Rico".
De sua parte, Bhagwati não contesta o modelo que Samuelson apresenta em seu artigo. "Paul é um grande economista e um teórico excepcional", disse. "E, em mercados como os serviços de tecnologia da informação, onde os Estados Unidos têm uma grande vantagem, é verdade que, caso as habilitações de outros países se desenvolvam, isso pode reduzir nossa vantagem competitiva e nossas exportações."
Mas Bhagwati, autor de "In Defense of Globalization" (Em defesa da globalização), diz que duvida que o modelo de Samuelson seja aplicável à economia como um todo. "Paul e eu discordamos apenas quanto aos aspectos realistas do assunto", disse.
A preocupação exagerada, diz Bhagwati, é a de que a China leve embora a maior parte dos empregos industriais e a Índia a maior parte dos empregos no setor de serviços de alta tecnologia. Tendo em conta o pequeno número de empregos efetivamente transferidos e com base em seu conhecimento pessoal dos países em desenvolvimento, ele conclui que as preocupações quanto à terceirização externa vêm sendo muito exageradas.
Como exemplo, Bhagwati apontou para estimativas freqüentemente repetidas de que, por causa da internet, até 300 milhões de trabalhadores com bom nível educacional, em sua maioria chineses e indianos, poderiam ingressar na força de trabalho e concorrer com os norte-americanos por empregos para profissionais capacitados.
Em seu estudo, Bhagwati e seus co-autores escrevem que esse tipo de avaliação sobre os sistemas educacionais da China e da Índia "beira o absurdo". Em entrevista, Bhagwati disse que "há muita gente, mas não quer dizer que sejam qualificados. Pensar assim, na verdade, é fazer uma generalização baseada na qualidade dos profissionais chineses e indianos que conseguem empregos no vale do Silício".
O modelo de Samuelson, disse Bhagwati, só gera perdas econômicas líquidas quando outros países reduzem seu diferencial tecnológico para com os Estados Unidos.
"Mas podemos mudar os termos do comércio internacional se continuarmos galgando os degraus da tecnologia", disse. "Os Estados Unidos são uma sociedade razoavelmente flexível, dinâmica e inovadora. Por isso, sou otimista."
As implicações políticas, acrescentou, incluem mais investimento em ciência, pesquisa e educação. E Samuelson e Bhagwati concordam em que a maneira de ajudar os trabalhadores que saem perdendo com a competição internacional, em seu período de ajuste, é por meio de programas de seguro-desemprego.
"Precisamos de mais proteção temporária para os que saem perdendo", disse Samuelson. "Minha crença é de que toda boa causa valha alguma ineficiência."


Tradução de Paulo Migliacci

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