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São Paulo, domingo, 12 de outubro de 2003

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LUÍS NASSIF

Pepitas raras da MPB

Foi em uma das apresentações do Festival Sete Cordas, no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, que ouvi a moça. Cheguei atrasado, mas a tempo de ouvir o Jorge Simas e o Luizinho solarem.
Mas, quando a moça entrou no palco e começou a cantar uma canção romântica, admito que não caí de joelhos por uma questão de compostura. Foram duas ou três canções, poderiam ter sido 12 e eu não conseguiria sair da posição catatônica em que fiquei, a ponto de ser chacoalhado por minha filha quando o show terminou.
Foi minha amiga Consuelo de Paula, ela própria cantora excepcional, doce, talentosa, generosa, que me contou o nome do fenômeno -Fabiana Cozzi- e depois a levou a um dos saraus que costumamos fazer periodicamente em casa.
A sensação de todos os convidados foi a mesma do dia em que Renato Braz, ainda pouco conhecido, antes de vencer o Prêmio Visa, ainda mantendo a timidez caipira encantadora, abriu a boca para cantar "Beatriz". Todos constataram de imediato estar diante de um cantor diferenciado. Aconteceu o mesmo com Fabiana.
Comentei sobre ela na lista M-Música de discussão pela internet, e o grande compositor Sérgio Santos, de Belo Horizonte, admitiu ter tido a mesma sensação no dia em que Fabiana, depois de ter pedido composições para gravar, telefonou e cantou uma delas pelo telefone.
Fabiana tem pouco mais de 30 anos, formada na PUC, às segundas-feiras mostra seu talento no "Ó do Borogodó", ali perto da Cardeal Arcoverde. E nem gravou ainda seu primeiro CD. O trabalho é independente, construído passo a passo, dentro das limitações financeiras de quem tem que se virar sozinha.
A voz é aveludada, tem um vibrato especial, disponível apenas nas grandes intérpretes. E Fabiana o utiliza com um discernimento que nada fica a dever a Elizeth e às grandes cantoras românticas. Sua voz tem o poder de comover como tinha a voz de Inhana, de Nana. Quando transita pelo samba, seu balanço e divisão são estupendos, não apenas a voz mas a musicalidade capaz de decifrar a música na primeira audição e transformá-la, fazendo a síntese, mudando o andamento, de uma maneira que não ouvia havia muito tempo. Sua experiência de teatro a dotou de um domínio de palco que parece mesclar a majestade de Mônica Salmaso com o balanço de Virginia Rosa.
Não cometeria o exagero de dizer que existem muitas Fabianas por aí, cantando na noite ou nos shows menores, à procura de espaço nas gravadoras ou nos circuitos maiores. E digo isso porque daqui a algum tempo, quando seu CD for lançado e seu nome for mais veiculado, Fabiana será consagrada rapidamente como uma das grandes intérpretes contemporâneas. Mas que existe gente boa de dar com o pau, existe.
Quem já ouviu André Mehmari? É um Yamandú Costa do piano, com o mesmo virtuosismo e uma formação musical imensamente superior, um dos maiores talentos que esse país já abrigou.
E o eremita erudito da Paraíba, Vital Farias? Há algumas semanas fui a João Pessoa, consegui seu telefone, liguei, ele me pegou no hotel, me levou a uma casa simples, de três andares, perto da Bica, que ele construiu com as próprias mãos. Há alguns anos descobriu a tecnologia e montou um pequeno estúdio com três computadores.
No violão começou a me mostrar sua "Epopéia Negra", uma peça sinfônica em fase final, em que misturará cantores líricos e cantadores nordestinos. E me mostrou um violão carregado de Tárrega e Barrios, de Villa e de Lauro, e me mostrou arranjos feitos em sintetizadores, com uma sofisticação, uma capacidade de mesclar o erudito e o popular nordestino à altura do aluno que ele foi de Radamés Gnatalli. Eu olhava da varanda o bairro humilde, o entorno daquele sobrado perdido, vizinho da Bica. E na minha frente o Vital construindo sua epopéia maravilhosa, que conquistaria qualquer platéia culta do planeta.
Daí concluí que há algo errado com essa indústria cultural brasileira. Não é possível tanta jóia de valor solta por aí, sem espaço para difundir sua obra.

E-mail - Luisnassif@uol.com.br


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