São Paulo, terça-feira, 12 de novembro de 2002

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ARTIGO

Rodada Doha precisa destruir subsídios agrícolas

MARTIN WOLF
DO "FINANCIAL TIMES"

"Nas negociações da Rodada Doha, os governos têm a primeira chance real desde que o Gatt entrou em vigor de tratar seriamente da liberalização do comércio de agrícolas."
Essas palavras, de Clayton Yeutter, que já foi representante do governo dos EUA para assuntos de comércio internacional e secretário da Agricultura, definem o mais importante desafio e a maior oportunidade na rodada de negociações multilaterais de comércio que se inicia.
É o mais importante desafio porque a Rodada Doha de negociações comerciais multilaterais necessita de um acordo sobre a agricultura. Trata-se de uma grande oportunidade, pois esse é o setor em que houve menos liberalização. Entre os países-membros da OCDE, o apoio total à agricultura chegou a US$ 311 bilhões em 2001 -1,3% de seu PIB. As tarifas médias sobre os produtos agrícolas atingiram 60%.
Os benefícios econômicos da liberalização seriam vastos. Em sua mais recente "Perspectiva Econômica Mundial", o FMI calcula os benefícios básicos de uma liberalização mundial do comércio de produtos agrícolas em US$ 128 bilhões ao ano, dos quais os países em desenvolvimento receberiam US$ 24 bilhões. Mas só um quarto do ganho que os países em desenvolvimento obteriam viria da liberalização nos países de alta renda. O restante viria das próprias liberalizações.
A questão é determinar se os países maiores assumirão a liderança em uma liberalização radical do comércio de produtos agrícolas. A Rodada Uruguai ao menos criou uma estrutura para a organização dessa liberalização. Além disso, embora o apoio aos produtores respondesse por 31% da receita agrícola da OCDE em 2001, isso representa uma queda ante os 38% do período 1986-88. E, nesse total, a participação do apoio a preços de mercado e dos subsídios diretos à produção, que geram distorção especialmente grave, também se reduziu, de 82% em 1986-88 para 69%.

Apoio do governo
No entanto resta ainda um longo caminho a percorrer. Na UE, 35% da receita agrícola continuava a vir de apoio governamental, em 2001. Nos EUA, essa proporção era de 21%. O apoio à agricultura custava, na Europa, US$ 106 bilhões ao ano; nos EUA, US$ 95 bilhões. A diferença significativa entre os EUA e a Europa está em quem paga. Quarenta e nove por cento do subsídio pago aos fazendeiros europeus é coberto por preços mais altos para a comida. Nos EUA, os preços mais altos respondem por 23%.
Mas a escala da assistência não é a única semelhança entre os dois gigantes. Há também medidas menos visíveis. A Lei de Segurança Agrícola e Investimento Rural de 2002, nos EUA, compromete o país a gastar até US$ 19 bilhões ao ano em programas de commodities, por dez anos. Na recente conferência da UE em Bruxelas, o presidente da França, Jacques Chirac, obteve um compromisso de elevar os gastos com a agricultura em 1% ao ano até 2013.
Ambas as medidas são deprimentes. Mas nenhuma das duas é necessariamente inconsistente com as regras atuais da OMC e nenhuma impede a liberalização no curso da Rodada Doha. Pelo contrário, essas decisões tornam a liberalização mais importante.

Ônus
Os EUA apresentaram uma proposta liberalizante, que pede abertura de mercado, redução de disparidades tarifárias, eliminação de subsídios à exportação e redução do apoio doméstico. Isso transfere o ônus para a UE. Não porque seja a entidade mais protecionista. Mas o bloco é um operador de maior porte. É também um exportador considerável de produtos subsidiados. Para outros exportadores, isso acrescenta o insulto do dumping à injúria pelos mercados perdidos.
Há alguma chance de liberalização substancial por parte da UE? Infelizmente, não muita. Isso se deve em parte ao fato de que o bloco criou um cartel de ministros da Agricultura que só respondem a poderosos lobbies agrícolas nacionais. E em parte ao fato de que a França luta ferozmente para preservar a assistência que seus fazendeiros recebem. Além disso, a UE sempre consegue inventar novas racionalizações para justificar suas más decisões políticas. Os argumentos em defesa da política agrícola comum já não invocam a auto-suficiência nem o apoio de renda. Agora falam de "multifuncionalidade".
Para seus proponentes, a "multifuncionalidade" envolve a busca de sustentabilidade ambiental, segurança alimentícia, desenvolvimento rural e garantia de alimentação. Isso é absurdo. A política agrícola comum é, de fato, multifuncional. Mas não são essas as funções a que ela serve.
Quais, portanto, são as verdadeiras funções da política agrícola comum? Ela garante que pouco menos de metade do Orçamento da UE seja dedicado à agricultura, com os 25% de fazendas maiores absorvendo 70% dos gastos.

Brasil perde
A política agrícola comum oferece seu maior incentivo à produção em massa e com uso pesado de insumos, o que causa perda de qualidade nos alimentos. Além disso, agrava a volatilidade de preços e os reduz nos mercados mundiais, à custa dos produtores em outros países, entre os quais os fazendeiros pobres e os países com uma forte vantagem comparativa na exportação de produtos agrícolas, como a Argentina e o Brasil. Por fim, a política agrícola comum solapa os esforços de liberalização em toda parte, especialmente nos países em desenvolvimento. É concebível que o fracasso em liberalizar a política agrícola comum destrua a Rodada Doha e até a OMC.
Trata-se sem dúvida de uma política multifuncional: regressiva, perdulária, prejudicial à qualidade dos alimentos e ao ambiente e um obstáculo à liberalização comercial. Franz Fischler, o comissário da Agricultura, está fazendo o que pode. Mas a UE como um todo parece estar além do alcance da vergonha ou da razão. A mudança só virá se os lobbies forem confrontados e as instituições mudadas. Uma crise na Rodada Doha poderia ser o ponto de partida. Uma disputa séria entre os novos e os atuais membros da UE quanto aos planos de distribuição desigual dos gastos da política agrícola comum também poderia ajudar. O melhor seria abolir o conselho de ministros da Agricultura e substitui-lo por um conselho de ministros das Finanças.
Os presságios são de fato desfavoráveis. Os EUA não defendem com ardor a liberalização do comércio de produtos agrícolas. A UE (e o Japão) resistirão até o fim. Os que se interessam profundamente pela liberalização precisam se manter firmes: "Se não houver liberalização na agricultura, não há acordo" deveria ser o seu lema.


Tradução de Clara Allain


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