|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARTIGO
Rodada Doha precisa destruir subsídios agrícolas
MARTIN WOLF
DO "FINANCIAL TIMES"
"Nas negociações da Rodada Doha, os governos
têm a primeira chance real desde
que o Gatt entrou em vigor de tratar seriamente da liberalização do
comércio de agrícolas."
Essas palavras, de Clayton Yeutter, que já foi representante do governo dos EUA para assuntos de
comércio internacional e secretário da Agricultura, definem o
mais importante desafio e a maior
oportunidade na rodada de negociações multilaterais de comércio
que se inicia.
É o mais importante desafio
porque a Rodada Doha de negociações comerciais multilaterais
necessita de um acordo sobre a
agricultura. Trata-se de uma
grande oportunidade, pois esse é
o setor em que houve menos liberalização. Entre os países-membros da OCDE, o apoio total à
agricultura chegou a US$ 311 bilhões em 2001 -1,3% de seu PIB.
As tarifas médias sobre os produtos agrícolas atingiram 60%.
Os benefícios econômicos da liberalização seriam vastos. Em sua
mais recente "Perspectiva Econômica Mundial", o FMI calcula os
benefícios básicos de uma liberalização mundial do comércio de
produtos agrícolas em US$ 128 bilhões ao ano, dos quais os países
em desenvolvimento receberiam
US$ 24 bilhões. Mas só um quarto
do ganho que os países em desenvolvimento obteriam viria da liberalização nos países de alta renda. O restante viria das próprias
liberalizações.
A questão é determinar se os
países maiores assumirão a liderança em uma liberalização radical do comércio de produtos agrícolas. A Rodada Uruguai ao menos criou uma estrutura para a organização dessa liberalização.
Além disso, embora o apoio aos
produtores respondesse por 31%
da receita agrícola da OCDE em
2001, isso representa uma queda
ante os 38% do período 1986-88.
E, nesse total, a participação do
apoio a preços de mercado e dos
subsídios diretos à produção, que
geram distorção especialmente
grave, também se reduziu, de 82%
em 1986-88 para 69%.
Apoio do governo
No entanto resta ainda um longo caminho a percorrer. Na UE,
35% da receita agrícola continuava a vir de apoio governamental,
em 2001. Nos EUA, essa proporção era de 21%. O apoio à agricultura custava, na Europa, US$ 106
bilhões ao ano; nos EUA, US$ 95
bilhões. A diferença significativa
entre os EUA e a Europa está em
quem paga. Quarenta e nove por
cento do subsídio pago aos fazendeiros europeus é coberto por
preços mais altos para a comida.
Nos EUA, os preços mais altos
respondem por 23%.
Mas a escala da assistência não é
a única semelhança entre os dois
gigantes. Há também medidas
menos visíveis. A Lei de Segurança Agrícola e Investimento Rural
de 2002, nos EUA, compromete o
país a gastar até US$ 19 bilhões ao
ano em programas de commodities, por dez anos. Na recente conferência da UE em Bruxelas, o
presidente da França, Jacques
Chirac, obteve um compromisso
de elevar os gastos com a agricultura em 1% ao ano até 2013.
Ambas as medidas são deprimentes. Mas nenhuma das duas é
necessariamente inconsistente
com as regras atuais da OMC e
nenhuma impede a liberalização
no curso da Rodada Doha. Pelo
contrário, essas decisões tornam a
liberalização mais importante.
Ônus
Os EUA apresentaram uma
proposta liberalizante, que pede
abertura de mercado, redução de
disparidades tarifárias, eliminação de subsídios à exportação e
redução do apoio doméstico. Isso
transfere o ônus para a UE. Não
porque seja a entidade mais protecionista. Mas o bloco é um operador de maior porte. É também
um exportador considerável de
produtos subsidiados. Para outros exportadores, isso acrescenta
o insulto do dumping à injúria pelos mercados perdidos.
Há alguma chance de liberalização substancial por parte da UE?
Infelizmente, não muita. Isso se
deve em parte ao fato de que o
bloco criou um cartel de ministros da Agricultura que só respondem a poderosos lobbies agrícolas nacionais. E em parte ao fato
de que a França luta ferozmente
para preservar a assistência que
seus fazendeiros recebem. Além
disso, a UE sempre consegue inventar novas racionalizações para
justificar suas más decisões políticas. Os argumentos em defesa da
política agrícola comum já não invocam a auto-suficiência nem o
apoio de renda. Agora falam de
"multifuncionalidade".
Para seus proponentes, a "multifuncionalidade" envolve a busca
de sustentabilidade ambiental, segurança alimentícia, desenvolvimento rural e garantia de alimentação. Isso é absurdo. A política
agrícola comum é, de fato, multifuncional. Mas não são essas as
funções a que ela serve.
Quais, portanto, são as verdadeiras funções da política agrícola
comum? Ela garante que pouco
menos de metade do Orçamento
da UE seja dedicado à agricultura,
com os 25% de fazendas maiores
absorvendo 70% dos gastos.
Brasil perde
A política agrícola comum oferece seu maior incentivo à produção em massa e com uso pesado
de insumos, o que causa perda de
qualidade nos alimentos. Além
disso, agrava a volatilidade de
preços e os reduz nos mercados
mundiais, à custa dos produtores
em outros países, entre os quais
os fazendeiros pobres e os países
com uma forte vantagem comparativa na exportação de produtos
agrícolas, como a Argentina e o
Brasil. Por fim, a política agrícola
comum solapa os esforços de liberalização em toda parte, especialmente nos países em desenvolvimento. É concebível que o fracasso em liberalizar a política agrícola comum destrua a Rodada Doha
e até a OMC.
Trata-se sem dúvida de uma política multifuncional: regressiva,
perdulária, prejudicial à qualidade dos alimentos e ao ambiente e
um obstáculo à liberalização comercial. Franz Fischler, o comissário da Agricultura, está fazendo
o que pode. Mas a UE como um
todo parece estar além do alcance
da vergonha ou da razão. A mudança só virá se os lobbies forem
confrontados e as instituições
mudadas. Uma crise na Rodada
Doha poderia ser o ponto de partida. Uma disputa séria entre os
novos e os atuais membros da UE
quanto aos planos de distribuição
desigual dos gastos da política
agrícola comum também poderia
ajudar. O melhor seria abolir o
conselho de ministros da Agricultura e substitui-lo por um conselho de ministros das Finanças.
Os presságios são de fato desfavoráveis. Os EUA não defendem
com ardor a liberalização do comércio de produtos agrícolas. A
UE (e o Japão) resistirão até o fim.
Os que se interessam profundamente pela liberalização precisam
se manter firmes: "Se não houver
liberalização na agricultura, não
há acordo" deveria ser o seu lema.
Tradução de Clara Allain
Texto Anterior: Opinião econômica: Três batatas para dois dias Próximo Texto: Trechos Índice
|