São Paulo, terça-feira, 12 de novembro de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Três batatas para dois dias

BENJAMIN STEINBRUCH

Andando com meu pai, Mendel, pelas ruas de Porto Alegre, perto do mercado, ele apontou um apartamento no primeiro andar de um velho edifício na av. Borges de Medeiros e me confidenciou: "Nas épocas difíceis, eu morava aqui, seus avós viviam em Rio Grande e me lembro de uma vez em que só havia três batatas para comer, durante dois dias". Eu era pequeno, e aquilo ficou na minha cabeça. Meu pai com três batatas para comer durante dois dias. Era mais uma lição de vida que me dava.
Se ele aqui estivesse, tenho certeza, seria um entusiasta do projeto Fome Zero do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva. Alguns sociólogos andaram escrevendo que não existe fome no Brasil, e sim desnutrição. Talvez tenham razão. Não há por aqui uma situação de ausência total de alimentos, caracterizada em grandes catástrofes do continente africano, em que só a ajuda humanitária pode salvar a vida dos flagelados. Mas tudo isso não passa de firula semântica. É obvio que milhões de pessoas passam fome em regiões pobres e têm seu crescimento e saúde prejudicados por não se alimentarem de forma adequada. Lula conhece isso melhor do que qualquer sociólogo, já que viveu o problema na pele em sua infância pobre no Nordeste.
A fome e a desnutrição, seja lá qual for a palavra, são o problema mais urgente a ser enfrentado pelo futuro governo. Lula escolheu bem o seu alvo inicial. Criança com fome não cresce. Estudante com fome não estuda. Trabalhador com fome não trabalha. Aposentado com fome não vive. Então, o começo de tudo deve ser por aí.
Encontre os dirigentes próximos a Lula e verá que eles estão certos de que podem resolver rapidamente o problema da fome -ou da desnutrição. Os olhos deles brilham, o entusiasmo e as convicções falam alto. Estão com a razão em seu ímpeto. O Brasil tem mesmo abundância de alimentos, muitas vezes desperdiçados, que podem nutrir toda a população do país sem qualquer problema.
É ótimo que as lideranças do novo governo sejam assim. Mas é preciso também diminuir um pouco as expectativas, porque nem tudo pode ser facilmente resolvido. Não é bom transmitir a idéia ilusória de que é fácil e rápido, por exemplo, fazer a economia crescer 5% ao ano ou criar 10 milhões de empregos a partir de 1º de janeiro.
O que se deve fazer desde o primeiro dia de governo são propostas ousadas, sair da mesmice e abandonar essa idéia de que não há salvação sem a manutenção de política monetária arrochada, dos juros altos e da recessão.
O governo Lula foi eleito, sem dúvida, para ter compromissos diretos com a população. Foi posto no poder para estabelecer objetivos concretos e desafiadores de médio e longo prazo, como criar 1 milhão ou 2 milhões de novos empregos no primeiro ano de mandato, construir 1 milhão de habitações e produzir 120 milhões de toneladas de grãos em 2003, dobrar o salário mínimo durante quatro anos, puxar a economia para cima, jogar no ataque, e não na retranca.
Lula e sua equipe acertam ao transmitir a idéia da audácia em suas propostas. O fim da fome deve ser apenas o começo.


Benjamin Steinbruch, 49, empresário, é presidente do conselho de administração da Companhia Siderúrgica Nacional.

E-mail - bvictoria@psi.com.br


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