São Paulo, quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

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PAULO RABELLO DE CASTRO

Nações em crise e Carnaval

A força extraordinária do crédito torna-se, ao fim do seu ciclo de alta, como sapateado em gelo fino

O CORTE, em quase pela metade, das taxas de juros americanas -o que corresponde a um juro real próximo de zero nos EUA- resultou na momentânea contenção dos sentimentos do mercado. A mídia procurou resgatar esperança de futuro na cobertura das "primárias", apesar da relativa pobreza de alternativas.
O balanço da administração Bush ficará como um dos mais deletérios para os interesses estratégicos daquela nação-líder. No Iraque, o Exército americano venceu as batalhas e vai perdendo a guerra. Liquidou Saddam, mas não a hostilidade contra os EUA. Quem não se lembra das "oportunidades" de negócios bilionários prometidos para o pós-guerra iraquiano? Cinco anos depois, o saldo é desapontador. Embora a máquina da guerra tenha feito girar o consumo interno dos EUA, ajudando a impulsionar as economias de seus fornecedores, especialmente a China, agora chegou a fatura, sob a forma de crise de crédito sem precedentes. O financista George Soros tem razão quando afirma ser esta a pior situação enfrentada pelos mercados nos últimos 60 anos. A raiz da crise não está nas hipotecas "populares". Esse mercado, apesar de relevante, não detém mais do que 15% do financiamento de residências nos EUA. Ainda ontem, o FMI reconheceu, em nota oficial, a disseminação do calote. As agências de risco, em polvorosa, aplicam centenas de rebaixamentos de notas.
O sonho americano está pendurado num Orçamento fiscal cuja despesa tem ultrapassado a receita de impostos em mais de US$ 300 bilhões anuais. Bush acaba de anunciar mais um Orçamento megadeficitário. Pior é o desequilíbrio nas contas externas, que acumulam necessidades de financiamento a partir do resto do mundo, de US$ 600 bilhões a US$ 800 bilhões por ano. A crise reflete um elemento de incerteza macroeconômica que não pode ser afastado ou neutralizado só porque o Fed baixou o juro real a zero. A técnica do "fugir para a frente", injetando mais liquidez em mercados já saturados por dívidas (governos, corporações e famílias), não terá efeito senão o de prolongar o período de ajuste e estancamento. Os gestores da moeda maquiam a recessão, mas não eliminam seus efeitos.
A diferença sobre situações anteriores, bem relatadas no livro de Alan Greenspan -espécie de nova bíblia das manobras de acomodação a crises financeiras-, é que, desta vez, o rompimento se dá no centro da parede do dique: o próprio sistema bancário dos EUA. O financiamento do déficit americano envolveu toda a estrutura mundial de instituições e fundos, que absorveram as operações de crédito lastreadas em garantias colaterais, como são conhecidas as securitizações (empacotamentos) de financiamentos imobiliários, de automóveis, de cartões de crédito, serviços etc.
As operações estruturadas em garantias permitiram, por um lado, que o capitalismo global fosse longe, ao abrir centenas de milhões de postos de emprego. Contudo a força extraordinária do crédito torna-se, ao fim do seu ciclo de alta, como sapateado em gelo fino. O sistema de crédito finalmente aprenderá sua lição, e os mercados de capitais sairão maiores, mais fortes, regionalmente mais diversificados, em prejuízo da hegemonia americana atual.
Se o Brasil perde ou ganha, é ainda difícil avaliar, pois nossa economia é mantida na retranca. Em principio, a crise de fora seria, aqui dentro, uma oportunidade de ouro. Mas, sem nenhum senso de oportunidade ou urgência, seguimos sendo o país de fevereiro, o mês do Carnaval.


PAULO RABELLO DE CASTRO, 58, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, classificadora de riscos. Preside também a RC Consultores, consultoria econômica, e o Conselho de Planejamento Estratégico da Fecomercio SP. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.
rabellodecastro@uol.com.br


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