São Paulo, domingo, 13 de outubro de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Descaminhos do maniqueísmo

LUIS GONZAGA BELLUZZO

Interessante, sem deixar de ser oportuna, a defesa que Luís Nassif fez do governo Fernando Henrique Cardoso em sua coluna na Folha de quinta-feira, dia 10 deste mês.
É saudável exorcizar as tentações do maniqueísmo. Melhor ainda é benzer-se contra os demônios dos julgamentos peremptórios, aquela coceira do sabe-tudo que ataca vez por outra a pele sensível de intelectuais, incluídos nesta categoria os jornalistas.
O ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco chegou a proclamar -em inesquecível entrevista à revista "Veja"- que os tempos do nacional-desenvolvimentismo foram "40 anos de burrice". Quando prolatada, essa sentença irrecorrível de condenação do passado exibia o quanto pode ser estúpido o dogmatismo economicista.
Era, então, de mau gosto, para não dizer quase proibido, lembrar que o prolongado desfile de burrice (sic), afinal, liberou o Brasil e os brasileiros da dependência da exportação de café e de outros produtos agrícolas menos votados (alem do bicho-de-pé, da febre amarela e da hemoptise), forjando a que já foi a mais importante economia urbana e industrial do chamado Terceiro Mundo.
Ninguém está disposto a sustentar que tudo foi uma maravilha. Os resultados estão aí. A distribuição de renda é um desastre. Os níveis de pobreza são vergonhosos. É estarrecedor, sobretudo, o desamparo da população diante das incertezas da vida e das andanças da economia.
Eleições suscitam polarização de opiniões e exageros de pontos de vista. A campanha eleitoral em curso, como outras, tem sido pródiga em manifestações de destempero.
Primeiro, o preconceito: não fosse por outras virtudes, a campanha de 2002 seria lembrada por ter aberto as portas da baixaria aos bem pensantes. Um luminar do pensamento nativo decretou que Lula é o grande responsável pela turbulência cambial porque as expectativas quanto ao futuro governam o presente e os mercados já decidiram que o PT não pode governar. O povo brasileiro manifestou seu desacordo. Mas pouco importa o que as urnas proclamem.
O expediente de satanizar o adversário revela, esta é a minha opinião, indigência mental e despreparo para a convivência democrática. Intelectuais, incluídos os jornalistas, não escapam destes desígnios: as sagradas funções da crítica e da dúvida sistemática são atropeladas pela paixão política e, não raro, por interesses subalternos.
Poucos amigos foram capazes de resistir aos encantos de FHC. Digo mais: adversários históricos e ferozes, nos idos dos anos 60, chegaram a compará-lo a "Fidel Castro sem barba". Estão terminando os seus dias prostrados diante da figura presidencial. O enlevo talvez seja justo. Mas houve quem mantivesse a amizade sem abandonar o espírito crítico. Um deles, especialmente qualificado para discernir e separar papéis, disse, sem arrependimentos nem ressentimentos, que o desfecho do governo FHC resulta de um tremendo erro de diagnóstico quanto à natureza da globalização financeira e às políticas adequadas para enfrentá-la.
As políticas "inteligentes" prometiam tirar o país do atraso e aproximar o padrão de vida dos brasileiros daqueles gozados pelos povos do Primeiro Mundo. Isso seria feito mediante a abertura da economia, a liberalização financeira, o recuo do Estado, as privatizações, a flexibilização do mercado de trabalho e a reforma da Previdência Social.
FHC e sua equipe apostaram na generosidade dos capitais que deambulavam pelo mundo. A finança globalizada cuidaria de buscar as oportunidades mais lucrativas, nivelando os pobres com os ricos: as oportunidades de ganho na periferia são mais elevadas do que as existentes nos países centrais. Nossos déficits em conta corrente seriam cobertos pelo influxo benfazejo do dinheiro-capital que circula pelo mundo, cuidando de igualar os rendimentos sem desprezar nenhuma informação. Ainda de quebra, nosso incontrolável impulso cosmopolita poderia ser finalmente saciado pela importação dos computadores de última geração, de carrões japoneses de luxo, de verduras frescas francesas, de calcinhas da Indonésia e de sutiãs da China. As classes endinheiradas gargalhariam.
Não vou juntar-me aos que costumam praticar o conhecido esporte de chute ao cadáver, muito apreciado nestas paragens. Se está longe de ser o herói pretendido pelos admiradores, é certo que professor Cardoso não é o único vilão do drama financeiro. Um drama que estamos protagonizando pela enésima vez.
É preciso reconhecer, no entanto, que o presidente FHC cumpriu com perfeição o mandato que lhe foi outorgado pela turma da tripa forra, os de fora e os de dentro.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 59, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia de São Paulo (governo Quércia).


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