São Paulo, quinta, 14 de janeiro de 1999

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OPINIÃO ECONÔMICA

Itamar, inocente. Clinton, culpado

ALOYSIO BIONDI

O governador Itamar Franco é acusado de provocar a crise no Brasil -e até de derrubar o dólar e a Bolsa de Nova York. Fatos e estatísticas desmentem totalmente essa versão. A explosão brasileira era inevitável (como esta coluna apontou na última semana, sob o título "Contradições aceleram a crise"). E a grande crise da economia dos EUA está a caminho -sem que isso signifique uma catástrofe mundial, graças à recuperação dos "tigres asiáticos" e aos novos rumos na Europa. Sobram dados para comprovar a "inocência" do governador Itamar Franco, relembrando-se que sua decisão foi anunciada na noite de quarta-feira, dia 6:
A fuga - Nos três primeiros dias da semana, as saídas (diárias) de dólares já haviam chegado aos US$ 200 milhões.
O estopim - Para dezembro, o governo e o acordo com o FMI previam saídas de US$ 3,5 bilhões. Elas chegaram a US$ 5,2 bilhões, com um "rombo extra" de US$ 1,7 bilhão.
O rastilho - No dia 24 de dezembro, véspera do Natal, foi divulgado o saldo negativo da balança comercial (exportações menos importações) de outubro e novembro, com US$ 1 bilhão a cada mês, ou US$ 500 milhões acima do previsto (e até anunciado) a cada mês. Vale dizer, um "rombo extra" de US$ 1 bilhão nos dois meses, levando o déficit em 11 meses para US$ 5,8 bilhões, já acima das "metas" previstas para o ano todo.
A pólvora - No dia do Natal, foi divulgado o déficit total do Brasil em suas contas com o exterior, isto é, balança comercial mais "serviços" (juros, turismo, fretes, lucros remetidos etc.). Outro desastre: US$ 34,6 bilhões em 11 meses, ou US$ 1,7 bilhão acima da previsão (para o ano todo) de US$ 32,9 bilhões.

Acerto de contas
Pelas contas do FMI e do governo brasileiro, o país deveria terminar o ano com US$ 38,5 bilhões de reservas. Com a saída "extra" de US$ 1,7 bilhão em dezembro, mais o "estouro" de US$ 1 bilhão na balança comercial em outubro e novembro (sem falar em dezembro), as reservas já estariam na faixa dos US$ 35 bilhões. Pelo acordo, ainda, cálculos de especialistas indicavam que elas poderiam (com "autorização" do FMI) cair uns US$ 5 bilhões, para uns US$ 33 bilhões -mas, atenção, até março. Além disso, os compromissos que o Brasil (empresas e governo) deveria pagar no exterior neste mês de janeiro eram calculados em uns US$ 5 bilhões, isto é, uns US$ 220 milhões por dia útil. Na prática, isso significa que a "entrada" de dólares no país precisaria ser na média de US$ 220 milhões por dia, para que as reservas não continuassem a ser usadas, sofrendo portanto novas quedas. Mas janeiro -como visto acima- começou não com saldos positivos, mas com fugas diárias de US$ 200 milhões. Antes da decisão de Itamar. Situação insustentável.
Desconfiança - Muito antes de Itamar Franco agir, os títulos do governo brasileiro no exterior estavam em queda. Na última semana de dezembro, segundo apontou o jornalista Fernando Rodrigues, nesta Folha (04/01/ 99), os chamados Rep 27, por exemplo, foram negociados por 68% do seu valor, contra 76% nas semanas anteriores.
Descrédito - Também os títulos emitidos por empresas brasileiras no exterior para levantar empréstimos mostravam a desconfiança internacional em relação ao Brasil. Excelente reportagem de Vanessa Adachi (Folha, 10/01/99) revelou essa tendência, comparando o valor pelo qual os papéis eram negociados em dezembro de 1997 e 1998: Siderúrgica Nacional, de 83% para 61% do valor de face; Sharp, de 83% para 47%; e Globopar, do grupo TV Globo, de 96% para 65%, entre outros exemplos. Tudo, antes de Itamar Franco. E, tudo, mesmo depois de assinado o acordo com o FMI, que deveria "restabelecer a confiança mundial no Brasil".
Até a Globo - Grande parcela da saída de dólares é provocada por empresas que decidem pagar antecipadamente empréstimos tomados no exterior -por medo de uma "máxi", que aumentaria suas dívidas. Em 19 de dezembro, houve uma dessas "fugas" recordes, de US$ 1 bilhão. Segundo o noticiário, um empréstimo de no mínimo US$ 120 milhões foi quitado antecipadamente pela Globo. Antes de Itamar.

E os EUA?
Itamar Franco foi acusado de tumultuar a economia brasileira e, com isso, derrubar até o dólar e Wall Street. A verdade?
Dólar - Está em queda desde agosto. Até dezembro, já havia caído 25% em relação à moeda japonesa, o iene. Nada a ver com o governador.
Caloteiro-mor - Como esta coluna apontou diversas vezes ao longo dos últimos meses, 1999 vai ser um ano de crise para o dólar, para os EUA e para Clinton. Por quê? Porque os EUA, ao contrário do que geralmente se pensa, apresentam "rombos" gigantescos, de US$ 20 a US$ 25 bilhões por mês, em sua balança comercial. E o Tesouro norte- americano tem uma dívida astronômica, de US$ 6 trilhões (trilhões), representada por títulos vendidos no mercado mundial.
O terremoto - Calcula-se que bancos e investidores japoneses "compraram" e mantêm entre 20% e 25% dos títulos da dívida dos EUA. Motivo: os juros dos títulos do governo japonês pagavam apenas de 0,7% a 1% (ao ano), contra 4,5% a 5% do Tesouro dos EUA. Desde novembro -sem que os analistas prestassem atenção à "virada"- a situação começou a mudar. O governo japonês passou a pagar mais por seus títulos: até 2% de juros, no dia 23 de dezembro (antes de Itamar, portanto). Resultado: os investidores começaram a vender títulos dos EUA e a comprar títulos japoneses. Em bom português: o governo dos EUA começa a enfrentar dificuldades para "rolar" sua dívida fantástica. Este é o motivo real da queda do dólar.
Ameaçado de impeachment, Clinton continua a alardear "êxitos" da economia norte- americana. Mas a onda consumista levou as famílias norte- americanas a níveis recordes de endividamento, com 15% a 20% dos orçamentos familiares comprometidos com prestações, cartões etc. E a Bolsa de Nova York prolonga uma fase de "loucura", com alta de até 1.000% em um ano para empresas ligadas à informática -alta insustentável, portanto.
Para finalizar: os preços do petróleo subiram 30% nos últimos dias, significando mais "rombo" para os EUA, gigantesco importador do produto. E, em compensação, uma ajuda poderosa à Rússia, Venezuela, México, grandes exportadores de petróleo.
Clinton que se cuide. Não por causa de Itamar. Mas por causa da previsível deterioração da economia dos EUA. O resto é falsificação da história.


Aloysio Biondi, 62, é jornalista econômico. Foi editor de Economia da Folha. Escreve às quintas-feiras no caderno Dinheiro.



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