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PAULO RABELLO DE CASTRO
João do Fórum
A história de João da Silva já foi contada, mas é preciso contá-la de novo aos homens do Fórum, os de Lula da Silva
A VIDA nos oferece muitas mortes, ainda que só uma nos leve
embora a chama do corpo. As
outras são mortes da alma, provisórias ou permanentes. No Brasil de
hoje, brasileiros vivem muitas mortes em vida que lhes são servidas pelas sutis vilanias dos poderosos. Somos como o menino João Hélio, arrastados de muitos modos por maldades invisíveis, inconscientes, mas
sofrendo sempre. Já foi menos doído e menos doido. Muitos morrerão
como qualquer João, João da Silva
ou João do Fórum.
A esse dedicarei hoje uma homenagem. Ergo um brinde ao excepcional trabalhador brasileiro, que não
desiste nunca. É ele quem paga a
conta dos despautérios econômicos
da nação, inclusive os mais recentes,
encomendados à guisa de o proteger
e de resgatar seus direitos.
João da Silva, brasileiro nascido
em 1981. Para dissecar o futuro de
João, reuniram-se na semana passada os homens da Previdência Social,
em Fórum especialmente criado
por comando direto do presidente
Lula, que também quer conhecer o
ponto futuro desse João. Por isso,
projeções começaram a ser feitas sobre como estará João, sua previdência, seus direitos, em 2020, em 2030,
em 2050, se João chegar lá. Não vai
chegar.
A história de João da Silva, o do
Fórum, já foi contada anos atrás,
mas é preciso contá-la de novo para
os homens do Fórum, os de Lula da
Silva.
João da Silva começou sua vida
profissional como ajudante de caminhão em 1997. Seu primeiro patrão
logo lhe assinou a carteira profissional e João passou a descontar para o
INSS 8% em folha, mais 20% pagos
em acréscimo, pelo patrão, sobre o
seu salário bruto.
Passaram-se muitos anos. João
rodou por aí, já como motorista,
sempre empregado em firmas que
recolhiam para o INSS. Quando os
cabelos brancos chegaram, João
olhou para o espelho e estava em
2022, com 41 anos. Pensou na sua
aposentadoria e uma sensação estranha lhe percorreu o corpo. O
Congresso Nacional havia, naquela
semana, votado mais uma lei de Previdência, a quinta em 15 anos, aumentando o tempo mínimo de contribuição de 40 para 45 anos, combinado com a idade mínima de aposentadoria de 65 anos para homens
e mulheres. João fez, então, uma
conta de cabeça. Faltariam mais 20
anos de contribuição, sobre os 25
que já contribuíra. Com 61 anos,
mesmo assim teria que trabalhar
mais quatro, até atingir a idade mínima de aposentadoria.
João continuou rodando. Agora,
com 59 anos, sente o peso da vida,
dos anos de rodagem. Quer parar,
mas sabe que isso não será possível.
Não nesse momento. O Parlamento
do Mercosul anunciará, naquela
manhã do ano de 2040, que os direitos previdenciários dos contribuintes brasileiros "que ficaram em regime de repartição" deverão ser revistos para reequilibrar o fluxo de receitas às despesas crescentes do
INSS. João está nessa. É um dos que
sempre contribuíram para o INSS
do lado brasileiro. Pelo regime de repartição, distinto dos regimes de capitalização em outras regiões do
Mercosul, João contribuiu desde
1997 para sustentar, com os seus recolhimentos, os pagamentos aos demais aposentados, todos esses anos.
Mas, na sua vez de se aposentar, sobraram aposentados e faltaram agora contribuintes jovens para financiá-lo.
A decisão do comitê é difícil e causará muita celeuma. O tempo mínimo de contribuição passará de 45
para 47 anos, e o mínimo de idade
para se aposentar será de 70 anos.
João sente enorme cansaço e um
desânimo infinito invade sua alma,
instalando-se pesadamente no porão de suas amarguras. Serão mais 11
anos de labuta, até 2051. Novas drogas e a clonagem de órgãos agora facilitam a vida de quem deve operar
atrás de uma jamanta de 50 toneladas. "Ainda não inventaram a clonagem da alma", pensa João. Ele também reconhece, com tristeza, o acerto do comentário duro de seu sobrinho contabilista, anos atrás: "Tio,
você já pagou sua aposentadoria várias vezes. Tenho pena de você".
João relembrou-se de tudo isso
enquanto dirigia. A pista estava molhada e o óleo de freio de seu enorme
caminhão sangrava traiçoeiramente
desde a última parada. Súbito, uma
curva chegou rápido demais. A explosão foi ouvida vários quilômetros
além daquele lugar.
PAULO RABELLO DE CASTRO, 58, doutor em economia
pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do
Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, classificadora
de riscos. Preside também a RC Consultores, consultoria
econômica, e o Conselho de Planejamento Estratégico da
Fecomercio SP. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias,
nesta coluna.
rabellodecastro@uol.com.br
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