São Paulo, domingo, 14 de março de 2010

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ANÁLISE

Estados de risco

NOURIEL ROUBINI

A Grande Recessão de 2008/9 foi deflagrada pelo acúmulo de dívidas e pela alavancagem exagerada nos domicílios, instituições financeiras e até o setor empresarial. Embora haja muita conversa sobre a redução da carga de dívidas, agora que a crise está se dissipando, a realidade é que os níveis de endividamento do setor privado se estabilizaram em patamares muito elevados.
Em contraste, como consequência do estímulo fiscal e da socialização de parte dos prejuízos do setor privado, o setor público está voltando a se endividar em escala maciça. Deficit superiores a 10% do PIB (Produto Interno Bruto) existem em diversas economias avançadas, e a relação entre dívida e PIB deve subir acentuadamente em certos casos, em 100% durante os próximos anos.
Como demonstram Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff em seu novo livro, "This Time is Different", crises de balanço como essas resultam historicamente em recuperações econômicas lentas, anêmicas e abaixo da tendência, por muitos anos.
Em países que não podem emitir títulos de dívida denominados em moeda própria (tradicionalmente economias de mercado emergente), ou que emitem títulos de dívida denominados em sua moeda, mas não têm o poder de imprimir dinheiro de maneira independente (como na zona do euro), deficits fiscais insustentáveis muitas vezes resultam em uma crise de crédito, em uma moratória nacional ou em outra modalidade coerciva de reestruturação da dívida pública.
Em países que realizam captação em sua própria moeda e podem monetizar a dívida pública, uma crise de dívida soberana é improvável, mas a monetização dos déficits fiscais pode resultar em alta inflação. Assim, os recentes problemas que a Grécia enfrentou são apenas a ponta do iceberg da dívida soberana em muitas economias avançadas (e em número menor de mercados emergentes). Os investidores ativistas dos mercados de títulos públicos já têm Grécia, Espanha, Portugal, Reino Unido, Irlanda e Islândia na mira, e estão forçando alta nos rendimentos dos papeis dos governos desses países. No futuro, podem dirigir atenções a outras nações.

Equilíbrio fiscal
As populações cada vez mais idosas exacerbam os problemas de sustentabilidade fiscal, já que a queda do nível populacional torna mais pesado o fardo dos passivos a descoberto do setor público, especialmente nos setores de previdência e saúde. Crescimento populacional baixo ou negativo também implica em menor crescimento econômico potencial.
O dilema é que, embora a consolidação fiscal seja necessária para prevenir um aumento insustentável nos ágios dos títulos soberanos, os efeitos a curto prazo de um aumento de impostos e corte de gastos públicos tendem a ser contrativos. Isso também complica a dinâmica da dívida pública e impede a restauração de sua sustentabilidade. De fato, foi essa a armadilha que a Argentina teve de enfrentar em 1998/2001, quando a contração fiscal requerida exacerbou a recessão e, por fim, resultou em moratória.
Em países como os membros da zona do euro, uma perda de competitividade externa, causada por política monetária apertada e moeda forte; a erosão da vantagem comparativa a longo prazo com relação aos mercados emergentes; e o crescimento dos salários por margem superior ao da produtividade impõem ainda mais restrições à retomada do crescimento. Caso o crescimento não se recupere, os problemas fiscais se agravarão, enquanto tornam politicamente mais difícil implementar as dolorosas reformas necessárias a restaurar a competitividade.

Círculo vicioso
Um círculo vicioso de deficits nas contas públicas, lacunas em conta corrente, uma dinâmica cada vez pior na dívida externa e crescimento estagnado poderiam se estabelecer. Com o tempo, isso poderia resultar em moratória da dívida pública e externa da zona do euro, e abandono da união monetária pelas economias frágeis e incapazes de se ajustar às reformas.
Injeções de liquidez por uma instituição internacional de último recurso, o FMI (Fundo Monetário Internacional), o Banco Central Europeu ou até mesmo um novo Fundo Monetário Europeu, poderiam impedir que o problema de falta de liquidez se torne problema de insolvência.
Mas caso um país esteja de fato insolvente, e não apenas sofrendo de falta de liquidez, "resgates" como esses não serão capazes de impedir uma futura moratória e desvalorização (ou abandono da união monetária), porque a instituição de último recurso um dia deixará de financiar uma dinâmica de dívida insustentável, como aconteceu na Argentina (e na Rússia em 1998).
Eliminar as dívidas do setor privado e reduzir o endividamento do setor público apenas por meio de crescimento é especialmente difícil nos casos em que uma crise de balanço leva a uma recuperação anêmica. E reduzir o nível de dívidas por meio de um aumento na poupança leva ao paradoxo da frugalidade: caso a poupança cresça depressa demais, a recessão se agrava e a situação da dívida se torna proporcionalmente ainda pior.
Em última análise, resolver os problemas de endividamento do setor privado por meio da socialização plena dos prejuízos privados e do endividamento do setor público é um risco. Na melhor das hipóteses, será preciso elevar impostos e cortar gastos, o que terá efeito negativo sobre o crescimento; na pior, o resultado pode ser tributação sobre o capital -direta (caso haja moratória) ou indireta (com a inflação).
Os problemas insustentáveis de endividamento do setor privado precisam ser resolvidos por moratórias, reduções de dívidas e conversão de instrumentos de dívida em instrumentos de capital. Se, em lugar disso, as dívidas privadas forem socializadas em escala excessiva, as economias avançadas enfrentarão um futuro sombrio: problemas sérios de sustentabilidade para suas dívidas pública, privada e externa, somados a perspectivas muito reduzidas de crescimento econômico.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

NOURIEL ROUBINI é presidente da RGE Monitor (www.rgemonitor.com) e professor da Escola Stern de Administração de Empresas, na Universidade de Nova York.



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