|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
COMÉRCIO
Samuel Guimarães foi demitido por Lafer do órgão de pesquisa do Itamaraty
Brasil só tem a perder com
a Alca, afirma embaixador
JULIA DUAILIBI
DA REPORTAGEM LOCAL
A Área de Livre Comércio das
Américas, a Alca, vai destruir o
projeto de desenvolvimento autônomo e de construção da sociedade brasileira. A política econômica atual aumenta a dependência
econômica em relação ao exterior. Tais opiniões, que no debate
atual poderiam ser chamadas de
nacionalistas e protecionistas, são
defendidas com vigor pelo embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, 61, exonerado na semana
passada da direção do Ipri (Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais do Itamaraty).
Para ele, a inserção brasileira no
processo de globalização é "no
mínimo despreocupada", além de
prejudicial à industria nacional.
Suas opiniões acabaram por fazer com que ele se tornasse o primeiro diplomata brasileiro a ser
exonerado de sua função, por discordar da posição oficial do Ministério das Relações Exteriores.
Com base na nova norma que
proíbe funcionários do Itamaraty
de se pronunciarem sobre política
externa sem autorização do ministério, conhecida como "lei da
mordaça", o ministro Celso Lafer
demitiu-o do cargo há nove dias.
Advogado, com mestrado em
economia pela Universidade de
Boston, Guimarães já foi conselheiro da embaixada do Brasil na
França, chefe do departamento
econômico e chefe da divisão econômica para a América Latina do
Itamaraty antes de assumir a direção do Ipri em 1995. É autor do livro "500 Anos de Periferia".
Leia abaixo os principais trechos da entrevista concedida à
Folha por e-mail e fax.
Folha - O que o sr. acha da política
brasileira para a globalização?
Samuel Pinheiro Guimarães - A
política brasileira tem se caracterizado por uma inserção no mínimo despreocupada no processo
de globalização, em busca de fugaz e ilusória "credibilidade" junto à comunidade financeira internacional. Reduziram tarifas unilateralmente; não controlaram os
capitais especulativos; aceitaram
investimentos estrangeiros sem
compromissos de tecnologia ou
de exportação; abdicaram de instrumentos de promoção de exportações e finalmente aceitaram
regras que limitam a autonomia
da política econômica. O resultado é um notável desequilíbrio em
conta corrente e a necessidade de
captar cerca de US$ 30 bilhões
anuais e, com o desaquecimento
da economia americana, surge a
possibilidade crescente de sérias
dificuldades de pagamentos.
Folha - Na visão do sr. o Brasil tem
condições de derrubar as barreiras
não-tarifárias norte-americanas
para os produtos brasileiros?
Guimarães - Os países desenvolvidos, cuja média tarifária hoje
em dia é baixa, utilizam as barreiras não-tarifárias, complexas, dúbias e arbitrárias, para defender
setores frágeis de suas economias
e reestruturá-los. Esses setores,
em geral, dispõem de ampla força
política e de representação no
Congresso americano, que vota e
faz implementar sistemas de normas técnicas fitossanitárias a que
se agregam sistemas antidumping, de direitos compensatórios
e de subsídios amplos e complexos. Julgar que será possível ao
Brasil desarmar essa teia de proteção americana a partir das negociações da Alca é simplesmente
ilusório e diversionista. Os EUA já
declararam com franqueza que
sua legislação interna não está em
jogo nas negociações.
Folha - O Brasil seria o país que
mais teria a perder com a Alca?
Guimarães - O Brasil é um dos
poucos países latino-americanos
com características de território,
de população, de recursos naturais, de nível de desenvolvimento,
de industrialização e de tecnologia que teria condições de construir uma sociedade verdadeiramente democrática, desenvolvida, próspera e justa, com alto grau
de autonomia. Que teria condições de participar em pé de igualdade com as chamadas grandes
potências no cenário internacional, cada vez mais arbitrário, violento e concentrador. Assim, as
negociações da Alca tornariam
impossível este objetivo, ao limitarem a possibilidade de o Estado
brasileiro desenvolver as políticas
comerciais, industriais e tecnológicas necessárias à construção da
economia brasileira e ao fortalecimento de sua sociedade.
Folha - Há estimativa de como ficaria a balança comercial brasileira
com a Alca?
Guimarães - Há estimativas e todos os estudos são unânimes em
concluir que haveria, com a redução de obstáculos, como não poderia deixar de ser, um aumento
das exportações brasileiras. Isso
apesar das dificuldades de conhecimento das elasticidades renda e
preço a nível de produto específico, das imprevisibilidades da legislação e da situação de demanda
das economias. No entanto o aumento das importações brasileiras seria bem mais significativo, o
que seria grave para um país com
urgência cada vez maior de gerar
um superávit comercial, devido
ao quadro preocupante de seus
compromissos externos, públicos
e privados.
Folha - O Mercosul acabou?
Guimarães - O Mercosul não
acabou, mas, como união aduaneira, ele corre riscos. Primeiro, as
tentativas de transformá-lo em
zona de livre-comércio. Segundo,
as tentativas para reduzir os níveis
da tarifa externa comum. Terceiro, as negociações com a Alca e
com a União Européia.
Folha - O sr. costuma dizer que
uma política externa alternativa
para o Brasil seria exatamente o inverso do Consenso de Washington.
Como seria essa inversão?
Guimarães - Um país com as características continentais do Brasil deve dar prioridade à construção de seu mercado interno, ao
fortalecimento da poupança interna, ao desenvolvimento tecnológico próprio, ao pleno emprego
de seus fatores de produção e ao
fortalecimento do capital nacional. Considerando as disparidades internas e a vulnerabilidade
externa, são necessárias políticas
comerciais, agrícolas, industriais,
tecnológicas e de emprego para
obter resultados que o livre jogo
das forças do mercado não pode
alcançar, dados a presença de oligopólios internacionais, população crescente e da baixa produtividade e dificuldades de acesso ao
mercado externo. A abertura total
e o Estado mínimo preconizados
pelo consenso são incompatíveis
com o desenvolvimento.
Folha- Pode-se ver um esgotamento da hegemonia norte-americana ou o século 20 foi sua prova?
Guimarães - O século 20 se caracterizou pela disputa entre o
modelo capitalista e o socialista,
pela disputa pela liderança do sistema capitalista e pelo fim dos impérios coloniais, estrutura que
prevaleceu por 450 anos. Essas
disputas terminaram com a vitória dos EUA. Mas o século 21 se
caracterizará pela emergência de
um sistema multipolar de disputa
e cooperação entre EUA, União
Européia, China e Rússia. No sistema multipolar, os grandes Estados da periferia, como a Índia e o
Brasil, têm grandes possibilidades
de se desenvolver e de se afirmar,
caso não se deixem incorporar a
esferas de influência e não aceitem normas restritivas de sua autonomia econômica e política.
Folha - O que o sr. acha da regra
que impede o pronunciamento dos
embaixadores, imposta pelo ministro Celso Lafer?
Guimarães - Esta regra contraria
frontalmente a Constituição.
Folha - O que mudou da gestão
Lampreia para a gestão Lafer?
Guimarães - É cedo para julgar.
Texto Anterior: Luís Nassif: Os direitos dos pacientes Próximo Texto: Lafer procura evitar debate, afirma Guimarães Índice
|