São Paulo, domingo, 14 de maio de 2006

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TENSÃO ENTRE VIZINHOS

Para americano, presidente tenta apenas encenar força

Morales faz jogo político com nacionalização, diz escritor

LEILA SUWWAN
DE NOVA YORK

O decreto de nacionalização do gás e petróleo na Bolívia faz parte de um "jogo político" necessário ao presidente Evo Morales, no qual é preciso encenar força e nacionalismo para um eleitorado radical e, nos bastidores, buscar diálogo e soluções negociadas com os países vizinhos e empresas investidoras.
Essa é a opinião de William Powers, autor do livro "Whispering in the Giant's Ear", sobre a guerra da Bolívia contra a globalização, que será lançado na próxima semana nos Estados Unidos.
O dito jogo político tem se intensificado nos últimos dias em Viena, na Áustria. Morales atacou frontalmente a Petrobras, classificada de "contrabandista", mas amenizou o tom e buscou diálogo com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva logo em seguida.
Para Powers, o que aparenta ser uma retomada populista de nacionalismo esquerdista é pouco mais do que um presidente novato aprendendo a segurar as rédeas do governo, equilibrando-se entre enormes expectativas da população, a dependência de investidores e empresas estrangeiras e a ala radical dentro da coalizão.
"É um jogo político", disse Powers, 35, que trabalha com projetos de desenvolvimento na Bolívia há quatro anos. "Ele precisa aplacar a demanda da esquerda radical, que queria uma nacionalização sem compensação pelos bens. Internamente, ele precisa aparentar muita força. Externamente, ele precisa de tempo para negociar e detalhar os passos com as empresas".
A seguir, trechos da entrevista de Powers.

Folha - Como norte-americano vivendo na Bolívia, como o sr. viu a eleição de Evo Morales?
William Powers -
Foi algo incrível. Quando ele tomou posse, todos que estavam na praça central choravam. É preciso ter em mente que, há duas décadas, os índios eram borrifados com DDT antes de se encontrar com uma autoridade de governo. Agora o presidente é um deles.

Folha - O sr. avalia que há muita fumaça e pouco fogo no episódio da nacionalização?
Powers -
Acho que é preciso confrontar a visão generalizada da mídia ocidental. Politicamente, Morales tem um mandato democrático, ganhou disparado nas eleições. Legalmente, a nacionalização tem argumentos fortes favoráveis porque a privatização ocorrida nos anos 90 não foi aprovada pelo Congresso, o que é inconstitucional. O impacto para as empresas precisa ser equilibrado com a margem de lucro enorme. O decreto não vai matá-las, elas vão ficar. É uma questão de distribuição mais justa dos benefícios.

Folha - Essa é uma reivindicação das massas? Há consciência do povo sobre a exploração energética ou é uma manobra ideológica?
Powers -
A nacionalização dos hidrocarbonetos é um grande assunto nacional há dois anos. Há uma sensação forte e generalizada na Bolívia de que o país sofreu um "assalto", que seus recursos estão sendo roubados desde a colonização européia. Até entre analfabetos o sentimento é o de que estão tirando proveito, com ajuda de políticos corruptos.

Folha - Mas o rancor histórico é com as superpotências ou com os países vizinhos, com o Brasil?
Powers -
Com o Brasil, a percepção é de solidariedade com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Uma idéia de que há um conflito, mas que vai se resolver porque Lula quer trabalhar com Morales. A questão é que o próprio governo ainda está tentando se ajeitar. Eles não têm experiência, não são altamente educados. É meio que um momento de sinergia e criatividade, de busca de soluções.

Folha - Mas então isso tudo é apenas uma renegociação de contratos e margens de lucro?
Powers -
É um jogo político necessário para Morales. Estamos num país bastante radicalizado. A maioria da população sobrevive com menos de US$ 2 por dia. Ele precisa aplacar a demanda da esquerda radical, que queria uma nacionalização sem compensação pelos bens. Então, internamente, ele precisa aparentar muita força. Externamente, ele precisa de tempo para negociar e detalhar os passos com as empresas. O fato é que a Bolívia precisa de mais dinheiro. Uma das coisas que precisamos ver é se a corrupção vai ser combatida ou se esse governo vai ser relapso.

Folha - Parece um jogo de fino equilíbrio. E incompreendido...
Powers -
Pelo que vi, há uma denúncia sobre o ridículo da posição: Morales fecha o trio dos "três amigos" [com Hugo Chávez, da Venezuela, e Fidel Castro, de Cuba] do "Eixo do Mal" deste hemisfério. Isso é um exagero.

Folha - Mas não há um alinhamento real com esses países?
Powers -
Sim, há simpatia e alinhamento. Mas não é algo preocupante. No contexto da globalização é isso que acontece. A Bolívia vai trabalhar com a Venezuela, mas pode também trabalhar com a Índia e a China, que demonstram interesse em investir. Há muitas possibilidades.

Folha - Há notícias de que o próximo passo é a desapropriação de terras. Como o sr. vê isso?
Powers -
Como dizem aqui, "todo és posible". Mas, pessoalmente, acho difícil. Santa Cruz, a região ocidental, rica e mais poderosa, não irá permitir algo assim. Não temos um movimento de sem-terra, como no Brasil.

Folha - O que pode causar uma guinada ao autoritarismo?
Powers -
Se a comunidade internacional decidir "punir" Morales, ele vai ser colocado no canto, e só haverá essa saída. O contexto aqui é de pobreza, desigualdade e corrupção. É preciso deixar a poeira baixar, iniciar conversas de cabeça aberta com o novo governo.

Folha - Mas tirando a nacionalização, quais são os programas concretos de governo para o desenvolvimento do país?
Powers -
É uma boa pergunta. Todos estão tentando descobrir isso -até o próprio governo. O momento agora é de equilíbrio da coalizão. Há uma forte ala radical que acredita em eliminar qualquer presença estrangeira no país.


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