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Capitalismo seguirá igual, diz Chomsky
Crítico de Bush, lingüista diz que governo evita palavra "estatização" para que público não reivindique direito de interferir
Intelectual de esquerda
descarta o surgimento de
um novo capitalismo pós-crash, com maior presença
do Estado na economia
FERNANDO RODRIGUES
ENVIADO ESPECIAL A NOVA YORK
Um dos intelectuais de esquerda mais respeitados do
planeta, o lingüista Noam
Chomsky, acha que a estatização total ou parcial do sistema
financeiro dos EUA não vai
ocorrer por causa da atual crise.
Colocaria em risco o que ele
classifica de "tirania privada".
Por essa razão os governos do
mundo desenvolvido evitam
usar o termo até mesmo quando se trata de assumir o controle, ainda que só por algum tempo, de alguns bancos e corretoras que faliram por causa da crise atual.
Aos 79 anos, Chomsky leciona no MIT (Massachusetts Institute of Technology), uma das
mais renomadas instituições
de ensino superior dos EUA.
Para ele, se o governo norte-americano assumisse publicamente algumas de suas ações
como "estatizações", abriria
tecnicamente espaço para que
os cidadãos do país também
passassem a reivindicar o poder de interferir na condução
do sistema. Até porque, diz o
lingüista, "em princípio, o governo representa o público".
A possibilidade de um novo
tipo de capitalismo surgir no
pós-crash, com maior presença
do Estado, é um cenário descartado por Chomsky. "A economia já é altamente dependente da dinâmica do setor estatal. É um sistema no qual o
público paga os custos e assume os riscos, e os lucros são privados. Eu não vejo nenhuma
indicação de que as instituições
básicas do capitalismo de Estado estejam prestes a serem significativamente modificadas. É
claro que a liberalização será
reduzida, mas no interesse das
instituições financeiras que
vão sobreviver", diz ele.
A seguir, trechos da entrevistas de Chomsky concedida à
Folha por e-mail.
FOLHA - Por que o governo dos EUA
e banqueiros evitam expressões como "nacionalizar" ou "estatizar" ao
falar dos pacotes de resgate para
bancos nos quais haverá dinheiro
público ou compra de ações pelo Estado?
NOAM CHOMSKY - Nós vivemos
numa cultura altamente ideológica na qual "estatização" é
uma palavra que põe medo, como "socialismo" (ou, para muitos, até "liberal"). A propósito,
esse é um assunto sério. Se o
Wells Fargo compra o Wachovia, então tudo fica dentro do
setor privado -ou seja, dentro
do sistema de tirania privada
no qual o público não tem voz,
em princípio. Dentro do sistema ideológico isso é chamado
"livre mercado" e "democracia". Se [Henry] Paulson dá dinheiro público para bancos
mas sem o direito de tomar decisões dentro dessas instituições, trata-se de um distanciamento da tirania pura chamada
"liberdade", mas não muito. Se
o governo adquire ações com
poder de decisão dentro dos
bancos, há sempre o risco de o
público então também poder
interferir -uma vez que, em
princípio, o governo representa
o público. Essa ameaça de democracia é muito mais severa
para ser aceitável dentro do sistema doutrinário reinante.
Um aspecto intrigante do sistema é que o governo é visto como uma força externa, separada da população. E em muitos
círculos, é interpretado como
força opressora da população.
A idéia de o governo ser "para e
pelo povo" é restrita a discursos
patriotas e aulas de civismo nas
escolas. Ou deveriam ser.
FOLHA - A onda de intervenção do
Estados nas instituições financeiras
será revertida no futuro ou haverá
um novo cenário no qual mais bancos passarão de maneira perene a
ser controlados pelo poder público?
CHOMSKY - A estatização completa é muito improvável pelas
razões que eu mencionei. Uma
ação nessa direção traria junto
uma ameaça de democracia, ou
seja, uma ameaça de o público
se tornar envolvido nas tomadas de decisões sobre o sistema
socioeconômico. O principal filósofo americano do século 20,
John Dewey, observou que enquanto o público não ganhar
controle efetivo das principais
instituições da sociedade -financeiras, industriais, mídia
etc.- a política permanecerá
como "uma sombra dos negócios sobre a sociedade". Naturalmente, esse é o tipo de negócio que o mundo prefere. E a
sua dominância sobre os sistemas doutrinários e políticos é
tão enorme que a tirania privada é chamada de "democracia".
Já a ameaça de haver democracia real é chamada de "ameaça
da tirania".
FOLHA - Esta é a pior crise econômica-financeira desde a Grande Depressão dos anos 30? Seria também
o prenúncio de grandes mudanças
no capitalismo como hoje o conhecemos?
CHOMSKY - Tem sido vista como a pior crise desde aquela
época. Mas ainda não sabemos
o quão severa será a crise econômica que está por vir.
Também acho que devemos
ser cautelosos ao usar o termo
"capitalismo". O sistemas existentes são de uma outra forma,
um capitalismo de estado. Tem
havido muita discussão sobre
se o público deverá bancar o
custo e o risco das operações de
salvamentos dos bancos, mas
essas lamentações -até por
economistas que deveriam conhecer melhor as coisas- estão
baseados na insatisfação ao se
enfrentar a realidade de como a
economia funciona.
A economia já é altamente
dependente da dinâmica do setor estatal para que haja inovação e desenvolvimento. É um
sistema no qual o público paga
os custos e assume os riscos. Os
lucros são privados. Eu não vejo nenhuma indicação de que as
instituições básicas do capitalismo de Estado estejam prestes a serem significativamente
modificadas. O sistema financeiro já foi alterado, com o colapso do modelo de bancos de
investimentos. Já se reconheceu décadas atrás que a liberalização dos anos 70 embutiam
um risco severo de crises repetidas e profundas. É claro que a
liberalização será reduzida,
mas no interesse das instituições financeiras que vão sobreviver.
É possível que a retórica hipócrita do mercado fundamentalista seja também um pouco
mais contida.
FOLHA - O sr. era jovem nos anos
30, mas vê semelhanças entre aquela crise a atual?
CHOMSKY - O desemprego era
maior, mas essa é apenas uma
das diferenças. Entre as semelhanças, creio que assim como
naquela época, agora estamos
indo em direção a um grande
depressão.
FOLHA - Os últimos governos tomaram decisões liberalizantes para
o mercado. Tanto o de George W.
Bush como o de Bill Clinton -neste
último, quebrando o muro que separava bancos comerciais de bancos
de investimentos. Democratas e republicanos são igualmente responsáveis?
CHOMSKY - A responsabilidade
pela situação atual é dos dois
partidos. Alertas foram ignorados. No fundo, republicanos e
democratas são ambos facções
de um "partido dos negócios".
São um pouco diferentes, mas
operam dentro da mesma estrutura institucional. Então
não me parece ser uma surpresa que a culpa seja compartilhada.
O problema é que essa discussão toda ignora o fato crucial da liberalização financeira:
o seu impacto em solapar a democracia.
FOLHA - Quem o sr. acredita estar
mais bem preparado para assumir a
Casa Branca.
CHOMSKY - Barack Obama, provavelmente. Ao longo do tempo, a população se dá economicamente de maneira melhor
com os democratas. Eles têm se
movido à direita em políticas
socioeconômicas. Mas John
McCain é um descontrolado. É
difícil saber o que ele poderia
fazer. E os interesses que ele representa são extremamente
perigosos para os EUA e para o
mundo. Também para a esfera
econômica.
FOLHA - Fala-se em num novo
Bretton Woods, uma nova estrutura
econômica mundial. Quem poderia
liderar esse processo?
CHOMSKY - O poder ainda reside primeiramente nos EUA.
Depois, na Europa. Apesar da
diversificação na Ásia, o que vejo ainda é o G7 tomando a frente nesse papel de reformar o
sistema.
FOLHA - Que tipo de capitalismo
vai emergir da atual crise?
CHOMSKY - O capitalismo de
Estado será provavelmente
muito parecido ao atual, com
um pouco mais de regulação e
controle sobre as instituições
financeiras, que serão reconstruídas (com os bancos de investimento). Mas não há indicações, pelo menos agora, de
mudanças dramáticas.
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