São Paulo, domingo, 15 de janeiro de 2006

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Pobre democracia

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

Está na praça o debate sobre a forma de escolha dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Há quem defenda a indicação por um colégio de pares, sem interferência do presidente da República ou do Congresso Nacional. Ilustres advogados, juízes e membros do Ministério Público emprestariam seu saber para os ritos do recrutamento. Todos respeitáveis, esses senhores têm uma característica comum: não foram escolhidos pelo voto popular e, portanto, sua decisões estão a salvo dos desatinos emanados das urnas.
Os defensores da mudança pretendem expurgar os "critérios políticos" na indicação dos juízes do Supremo Tribunal Federal. Será que vão ressuscitar a velhinha de Taubaté para proferir uma conferência sobre o tema? Eu, por exemplo, preferiria Carl Schmitt. Imagino que essa mente perigosamente lúcida explicaria aos néscios de todo o gênero a natureza essencialmente política do tribunal supremo. A custódia da Constituição, diz Carlo Galli, em sua obra monumental sobre o jurista alemão, não se exercita pela via jurisdicional ordinária.
Não raro, as decisões das cortes constitucionais, avalia Schmitt, são vítimas da ilusão formalista que pretende distinguir as questões jurídicas das questões políticas. Só o tecnicismo das burocracias não-eleitas pode excogitar tais enganos a respeito de suas próprias ambições de poder.
Arranjos entre facções do baronato tecnocrático, no Brasil e em toda a parte, terminam em graves prejuízos para os cidadãos. O povo brasileiro corre o risco de, ainda uma vez, assistir à mutilação de sua soberania, surrupiada pela soberba tecnocrática e corporativista, não bastasse a independência do Banco Central. Diante de tal cometimento, não é despropositado suspeitar que, no rastro dos militares e dos economistas, estamos prontos para outra aventura: a ditadura dos jurisconsultos, hoje auto-intitulados "operadores do direito", expressão assustadora.
A transição da ditadura militar para a democracia foi, por exemplo, negociada por cima. A campanha das diretas começou a ser derrotada dentro da oposição. A intensa mobilização popular não teve forças para vencer as casamatas do poder real.
A turma que manda não tem o hábito de dar refresco ao inimigo. Em suas fileiras abrigavam-se os liberais da democracia restrita e as burocracias supostamente meritocráticas que só toleram a soberania popular enquanto o povaréu não botar as manguinhas de fora. Já que se trata do Brasil, é prudente não subestimar as inclinações antidemocráticas dos que trafegam nas "altas esferas".
A escolha dos juízes do Supremo, encarregados de defender a Constituição, não pode ser fruto de um conciliábulo de sábios e especialistas. É prerrogativa dos poderes eleitos. É óbvio que a escolha deve respeitar, entre outros critérios, estritos requerimentos de competência jurídica. O Senado pode recusar as indicações do presidente da República.
A busca de soluções heróicas, destinadas a expurgar as contradições necessárias da democracia moderna, não raro culmina na restrição de direitos. Quando partiam para esses métodos, as ditaduras tinham pelo menos o mérito da sinceridade. Violavam às claras os direitos dos cidadãos e não se escondiam atrás de uma aparência de legalidade.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 63, é professor titular de economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).

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