São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Quem muito quer nada tem

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

A política monetária é a senhora dos corações e das mentes. Nos Estados Unidos, na Europa, no Brasil, as decisões dos bancos centrais são aguardadas pelos mercados como a palavra de Roma era esperada pela cristandade. Nas economias contemporâneas, diz Michel Aglietta, consultor do Banco Central Europeu, cabe à política monetária "fixar o ponto focal que permite aos agentes coordenar suas antecipações enquanto estabelecem seus planos de ação". O último grito na matéria é a política de metas de inflação. Assim, a política de metas trata de definir um espaço de variação das taxas de inflação em que se supõe preservada a confiança na moeda.
A moeda e a confiança nela são fenômenos coletivos, sociais. Tenho confiança na moeda porque sei que o outro está disposto a aceitá-la como forma geral de existência do valor das mercadorias particulares, dos contratos e da riqueza. O metabolismo da troca, da produção e dos pagamentos depende do grau de certeza da preservação da forma geral do valor, que deve comandar cada ato particular e contingente. A reprodução da sociedade fundada na propriedade privada, no intercâmbio generalizado de mercadorias e na acumulação monetária depende da capacidade do Estado de manter a integridade da convenção social que serve de norma aos atos dos detentores de riqueza.
O dinheiro na sociedade mercantil-capitalista deve aparecer como a unidade das três funções, a saber: moeda de conta, meio de pagamento e reserva de valor. As duas primeiras executam de forma reiterada os ritos do reconhecimento social a que estão obrigados os produtores privados: primeiro, denominar cada mercadoria particular na forma geral do valor e, depois, o salto mortal, ou seja, submeter-se à aceitação (venda) dessa declaração pelo tribunal do mercado. A terceira função, a de reserva de valor, corresponde à impossível, mas obrigatória, busca da certeza que acompanha a dimensão quantitativa da riqueza, inexoravelmente avaliada sob a forma monetária e abstrata.
Isso significa que a política monetária tem como objetivo central garantir a numeração das mercadorias, dos ativos e das dívidas -inclusive da força de trabalho- por uma medida comum de valor. A referência a um padrão comum de medida antecede, do ponto de vista lógico, o exercício das demais funções da moeda, meio de pagamento e reserva de valor.
Os agentes privados têm de acreditar nessa convenção precária e transformá-la numa âncora nominal, num centro de gravitação de suas decisões, girando como a Terra em torno do Sol. Em boa medida, a estabilidade monetária é produto de uma ilusão necessária que torna possível à moeda cumprir simultaneamente suas funções de unidade de conta, meio de circulação e reserva de valor. Essa ilusão deve ser suficientemente enraizada para permitir o movimento de preços relativos e a operação de forças da oferta e da demanda. Caso contrário, a sociedade pode se dilacerar num processo de indexação selvagem que leva à hiperinflação e à destruição do padrão monetário.
Mas, numa economia monetária, diz o professor Aglietta, o sistema de preços relativos não é independente da moeda: os agentes econômicos devem "descobrir" os preços relativos a partir dos preços nominais. Isso torna ambíguo o reconhecimento da inflação. Nem toda elevação de preços nominais é indício de um processo inflacionário, ou seja, de um movimento continuado e cumulativo do nível geral de preços. A subida de preços nominais pode resultar de choques temporários, por exemplo, nos preços das matérias-primas e dos alimentos ou, como é o caso no Brasil, de uma indexação pouco inteligente de preços administrados.
Assim, a condução da política monetária depende da capacidade do banco central de compreender, de forma concreta, os canais de transmissão monetária e de propagação inflacionária. Numa economia em que a demanda de moeda é endógena e, portanto, depende da disposição ao endividamento dos empresários privados e da disposição de criar moeda dos bancos, é improvável que um processo inflacionário se desenvolva na ausência de uma expansão do crédito. Ainda assim, a deflagração de um processo inflacionário exigiria a existência de mecanismos de indexação dos rendimentos do trabalho.
A despeito de alguns gritos de "fogo" na platéia conservadora, a economia brasileira ainda trota a passos de Rocinante. Os dados mais recentes mostram que a recuperação é pífia: a demanda de crédito alça vôo raso e a queda de rendimentos segue o seu curso. Mas, descontados os equívocos conjunturais, o Banco Central insiste em cometer o erro técnico de fixar metas pouco realistas, ou seja, muito baixas para uma economia sujeita a choques, particularmente os que decorrem do câmbio flutuante, numa situação de fragilidade externa, isto é, de extrema dependência dos estados de expectativas prevalecentes nos mercados internacionais de crédito. Além disso, se, de fato, a economia ingressar numa etapa de crescimento, ainda que moderado, as empresas cuidarão de recuperar suas margens de lucro, há muito comprimidas. Isso significa que as sucessivas tentativas de alcançar metas muito ambiciosas para garantir a credibilidade com os mercados pode acabar solapando a confiança na ação do Banco Central.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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