São Paulo, quarta-feira, 15 de maio de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Algo há...

PAULO RABELLO DE CASTRO

Diante da acumulação de evidências sobre um fato qualquer, que começavam a saltar aos olhos e a subir pelas pernas do seu eleitorado, o político rústico, porém malandro e sagaz, soltava invariavelmente aquela interjeição sherlokiana com a qual definia sua disposição de não mais acolitar o óbvio: "Algo há!" -exclamava ele, com a circunspeção de um pesquisador.
Os economistas mais malandros já chegaram também ao estágio dessa interjeição politicamente correta quando analisam as despesas públicas dos últimos anos: algo há!
Porque, de mais a mais, se "algo" não houvesse, como poderia estar, por exemplo, o ministro da Fazenda, que é um homem experiente e preparado, tão visivelmente perturbado pelo atraso na votação da CPMF?
A arrecadação da CPMF é que está salvando a pátria (deles). Com seus projetados R$ 20 bilhões de arrecadação anual, é a contribuição "provisória" que tem fechado o caixa da República -o chamado superávit primário-, representado por um saldo da ordem de 3% da renda interna, com o qual o governo enfrenta a sangria de quase 8% (também sobre a renda interna) de juros decorrentes de sua dívida no mercado.
Por isso quem olha para as contas públicas de relance vê apenas um governo superavitário, que cumpre com rigor a cobertura dos seus gastos, e ainda gera um saldo primário substancial para atender, pelo menos parcialmente, a conta indigesta dos juros! O FMI endossa e parabeniza esse comportamento fiscal "exemplar" porque a arrecadação tributária sobe em linha com as despesas, impedindo que o endividamento, como proporção do bolo produtivo, cresça explosivamente.
No entanto algo há, porque o que se expande cada vez mais devagar é a produção nacional, que corresponde a uma renda quase estagnada há vários anos, em que a única fatia crescente do gasto privado atende pelo nome de tributação!
Algo há de equivocado nessa equação das contas públicas em que a sustentação dos superávits primários se dá sob condição de um crescimento ininterrupto das arrecadações de todos os tipos, de tal forma que o governo, desesperado, não pode rever ou redefinir um só item de suas receitas, nem mesmo aquela arrecadação que ele vem chamando jocosamente de provisória!
No mundo dos financiadores do governo -as empresas privadas e as pessoas físicas-, ao contrário, tudo tem sido provisório, marcado por intensa e contínua luta para equilibrar orçamentos diante de receitas incertas. Todos têm de se ajustar, com suor e lágrimas -alguns até com sangue.
Enquanto isso, a chamada máquina pública se ajusta crescendo sobre as rendas privadas. Ela não corta despesas nem reavalia a qualidade dos seus gastos, já que tudo ou quase tudo é "direito adquirido" por alguém ou uma "necessidade imperiosa" a ser atendida (em geral, com um toque do "social"). O crescimento da chamada carga tributária do país, que ameaça chegar neste ano a 35% do PIB, não tem outro motivo senão a cobertura da despesa que aumenta do outro lado, ainda mais velozmente, avançando sobre as rendas de quem trabalha ou de quem emprega.
A despesa pública federal dos últimos quatro anos descreve a forma gráfica de um foguete (ver quadro) que nos leva para um planeta novo, desconhecido.
Em breves anos, poderemos dizer que cerca de 40% a 50% de tudo o que se compra ou se paga neste país tem origem em rendas transferidas pelo governo, ou seja, o setor menos eficiente da economia estará gerenciando e coordenando cerca de metade da vida nacional -aquela que ainda existir, obviamente... Não é de todo improvável que esse salto de qualidade, para trás, possa ocorrer no prazo de cinco a dez anos. Pelo andar da carruagem, conforme o atual panorama eleitoral, ocorrerão reestatizações de setores "socialmente sensíveis" cujos empresários privados não quiseram ou não souberam gerenciar direito os "presentes" que ganharam.
Crédito privado? Bobagem! O crédito será público e orientado, conforme já é hoje. Primeiro, para rolar a dívida do governo; segundo, para cobrir a dívida do governo e, terceiro, para financiar as atividades privadas consideradas "prioritárias" pela política industrial do governo. Para quem não acredita, basta perguntar como já se distribui, no dia de hoje, o crédito no Brasil, conforme seu destinatário final...
A explosão da despesa pública é a origem inequívoca da nossa estagnação econômica. Contudo os diagnósticos mais frequentes da paralisia nacional, segundo o governo e os candidatos ao governo, vão sempre parar em outras causas (o déficit externo, os juros altos, o protecionismo), já que é especialmente difícil olhar o próprio umbigo antes de pensar em alcançar o bolso do contribuinte.
Mais grave ainda é perceber que, genuinamente, não há candidato presidencial, entre os até aqui apresentados, com um discurso voltado para uma revolução produtiva no país, baseada na contenção e na realocação das despesas do governo.
Pelo contrário: o que se viu, na semana passada, foi o Supremo Tribunal relaxar a interpretação da Lei de Responsabilidade Fiscal para o gáudio dos futuros gastadores públicos. Não espanta que o ministro da Fazenda, homem sério, que corre atrás de verbas para financiar o gasto incontinente e impenitente da "família" do setor público, esteja tão apavorado com a não-aprovação da CPMF.
Definitivamente, algo há!


Paulo Rabello de Castro, 53, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico (RJ). Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.
E-mail - paulo@reconsultores.com.br


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