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OPINIÃO ECONÔMICA
Capital para todos
PAULO RABELLO DE CASTRO
O "espírito Americano",
encarnado pelo sonho de
Thomas Jefferson, está bem resumido na sua premissa sobre uma
república construída em bases sólidas: aquela "voltada ao alargamento das possibilidades da vida... e à crença de que os homens
se inclinam a viver honestamente, se os meios de fazê-lo lhes são
disponíveis". Essa oportuna citação, extraída de artigo do economista Glenn Yago, no último número do "Milken Institute Review" (www.milkeninstitute.org), nos relembra da condição
fundamental do processo de inclusão na cidadania plena -o
acesso à propriedade e ao capital,
em todas as suas formas-, algo
que permeou as iniciativas políticas mais importantes de todos os
fundadores da América, entre
eles Washington, Adams, Jackson, Lincoln e o próprio Jefferson.
Pois, se essa é a régua de medida de uma sólida construção social, no Brasil estamos indo de
mal a pior. O mal é que aqui não
se construiu, ao longo das últimas
décadas, praticamente nenhuma
escada confiável de acesso ao capital, aí representada pelo crédito
empresarial, de consumo ou habitacional, e menos ainda por
formas diversas de participação
pulverizada no capital das empresas, por via acionária ou de
participação em lucros. Mas o
pior não é isso. O pior é ver cair,
ao longo do tempo, a própria participação da renda do trabalho
(salários e outras remunerações
da mão-de-obra) no conjunto da
renda nacional ou como percentagem do PIB. A renda total
anual, gerada no Brasil, já conteve, até os anos 70, faixa de 60%
de participação em salários, ficando as demais fatias do bolo
social para os lucros das empresas, os juros e aluguéis dos chamados "rentistas". No momento
atual, as contas nacionais apontam uma participação do trabalho achatada na casa dos 36,2%
(dado de 2002).
Vivemos o ápice da república
de exclusão social, embora cantando loas à sofrida estabilidade
inflacionária. Definitivamente,
um péssimo modelo, que, para
além de retirar as escadas de
acesso da população aos meios lícitos de acumulação de algum
capital, tem feito bem pior: estreitou, ao invés de alargar, a fatia
da remuneração do trabalho no
bolo da renda nacional. Pior ainda. Estamos ingressando no pan-assistencialismo, estágio avançado do distributivismo, em que governos de inclinação populista
socorrem, com "mimos" e promessas incumpríveis, a massa desempregada de ocupações efetivamente produtivas. Não espanta que esta Folha, no último domingo, tenha dedicado página inteira para constatar que se consome em 2004 menor quantidade de "bens de salário" do que em 1996 e 2000, os dois
anos de comparação utilizados
no texto. É que, de fato, a massa
trabalhadora brasileira tem sido
sistematicamente afastada da
acumulação de capital, apesar do
discurso político de inclusão, como, aliás, se esperaria ocorrer em
sociedades do tipo prismático, na
qual as idéias socialmente mais
generosas das novas lideranças
que vêm chegando (e sempre vem
chegando gente nova) vão sendo
desviadas, como feixes de luz quebrados num prisma, à medida
que o poder é alcançado e os acordos de cabeceira substituem as
boas e sadias intenções em favor
da democratização das oportunidades da grande maioria de subcidadãos.
Aloizio Mercadante, na sua última coluna para a Folha, fala
corretamente da "resistência das
elites brasileiras a distribuir sua
prosperidade". O contexto de sua
crítica foi o período áureo do crescimento econômico, quando a
"ditadura militar viria para consolidar essa opção pela exclusão
social". Lembro como deve ser difícil romper, no exercício do poder, nossa propensão histórica a
perpetuar as formas de exclusão e
desapontamento social. Essa tarefa requereria clareza de estadista
e músculos políticos de halterofilista.
Bem que alguns tentaram. O
FGTS (Fundo de Garantia do
Tempo de Serviço) é uma dessas
tentativas. O PIS (Programa de
Integração Social) visava à compra de ações por trabalhadores
nas empresas empregadoras dessa mão-de-obra. O BNH -hoje
extinto- era o Banco Nacional
da Habitação do povo. Os fundos
de ações conhecidos como DL 157
eram aplicações de Imposto de
Renda das pessoas em capital empresarial. Custa crer que tamanha variedade de iniciativas,
muitas do período militar, tenha
se perdido ou se frustrado no seu
principio básico de dar acesso à
propriedade e ao capital.
É forçoso reconhecer que, no
Brasil, sempre se tenta evitar, por
todos os meios, as formas de acesso econômico do trabalhador,
mesmo quando este é credor da
empresa em que trabalha ou de
um fundo social. Ainda agora
surge mais um caso emblemático,
na crise financeira e de gestão da
Varig. Nos últimos dois anos de
penúria, a empresa foi ressarcindo seus credores -bancos, fornecedores e o próprio governo. A dívida passou a concentrar-se nos
ombros dos trabalhadores da
companhia, sob a forma de uma
insuficiência no fundo de pensão
dos seus empregados, da ordem
de R$ 2 bilhões de passivo a descoberto. Apesar de ser esse o maior
crédito coletivo contra a companhia, a maioria das "soluções"
contempladas prima por desconsiderá-lo. Ou seja: a forma imaginada pela sociedade como meio
de acumulação previdenciária
-o fundo de pensão- está servindo, nesse caso, de poço de frustração do futuro de toda a coletividade de trabalhadores. Defender esse credor trabalhador e proteger sua participação em qualquer alternativa de capitalização
futura da Varig seria o ideal "jeffersoniano". Contudo mais uma
vez se organizam os mecanismos
oportunistas do capitalismo de
poucos, a perpetuar o avanço do
retrocesso.
Frustra-se, assim, se nada mais
for feito, em mais essa oportunidade real de construção de cidadania, aquele ideal expresso, com
tanta elegância, por Mercadante,
quando sonha para nosso país "...
uma nova etapa de nossa história
republicana, a república da inclusão, com crescimento para todos".
A ver.
Paulo Rabello de Castro, 55, doutor em
economia pela Universidade de Chicago
(EUA), é vice-presidente do Instituto
Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de
crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada
15 dias, nesta coluna.
E-mail -
rabellodecastro@uol.com.br
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