São Paulo, quarta-feira, 15 de setembro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Capital para todos

PAULO RABELLO DE CASTRO

O "espírito Americano", encarnado pelo sonho de Thomas Jefferson, está bem resumido na sua premissa sobre uma república construída em bases sólidas: aquela "voltada ao alargamento das possibilidades da vida... e à crença de que os homens se inclinam a viver honestamente, se os meios de fazê-lo lhes são disponíveis". Essa oportuna citação, extraída de artigo do economista Glenn Yago, no último número do "Milken Institute Review" (www.milkeninstitute.org), nos relembra da condição fundamental do processo de inclusão na cidadania plena -o acesso à propriedade e ao capital, em todas as suas formas-, algo que permeou as iniciativas políticas mais importantes de todos os fundadores da América, entre eles Washington, Adams, Jackson, Lincoln e o próprio Jefferson.
Pois, se essa é a régua de medida de uma sólida construção social, no Brasil estamos indo de mal a pior. O mal é que aqui não se construiu, ao longo das últimas décadas, praticamente nenhuma escada confiável de acesso ao capital, aí representada pelo crédito empresarial, de consumo ou habitacional, e menos ainda por formas diversas de participação pulverizada no capital das empresas, por via acionária ou de participação em lucros. Mas o pior não é isso. O pior é ver cair, ao longo do tempo, a própria participação da renda do trabalho (salários e outras remunerações da mão-de-obra) no conjunto da renda nacional ou como percentagem do PIB. A renda total anual, gerada no Brasil, já conteve, até os anos 70, faixa de 60% de participação em salários, ficando as demais fatias do bolo social para os lucros das empresas, os juros e aluguéis dos chamados "rentistas". No momento atual, as contas nacionais apontam uma participação do trabalho achatada na casa dos 36,2% (dado de 2002).
Vivemos o ápice da república de exclusão social, embora cantando loas à sofrida estabilidade inflacionária. Definitivamente, um péssimo modelo, que, para além de retirar as escadas de acesso da população aos meios lícitos de acumulação de algum capital, tem feito bem pior: estreitou, ao invés de alargar, a fatia da remuneração do trabalho no bolo da renda nacional. Pior ainda. Estamos ingressando no pan-assistencialismo, estágio avançado do distributivismo, em que governos de inclinação populista socorrem, com "mimos" e promessas incumpríveis, a massa desempregada de ocupações efetivamente produtivas. Não espanta que esta Folha, no último domingo, tenha dedicado página inteira para constatar que se consome em 2004 menor quantidade de "bens de salário" do que em 1996 e 2000, os dois anos de comparação utilizados no texto. É que, de fato, a massa trabalhadora brasileira tem sido sistematicamente afastada da acumulação de capital, apesar do discurso político de inclusão, como, aliás, se esperaria ocorrer em sociedades do tipo prismático, na qual as idéias socialmente mais generosas das novas lideranças que vêm chegando (e sempre vem chegando gente nova) vão sendo desviadas, como feixes de luz quebrados num prisma, à medida que o poder é alcançado e os acordos de cabeceira substituem as boas e sadias intenções em favor da democratização das oportunidades da grande maioria de subcidadãos.
Aloizio Mercadante, na sua última coluna para a Folha, fala corretamente da "resistência das elites brasileiras a distribuir sua prosperidade". O contexto de sua crítica foi o período áureo do crescimento econômico, quando a "ditadura militar viria para consolidar essa opção pela exclusão social". Lembro como deve ser difícil romper, no exercício do poder, nossa propensão histórica a perpetuar as formas de exclusão e desapontamento social. Essa tarefa requereria clareza de estadista e músculos políticos de halterofilista.
Bem que alguns tentaram. O FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) é uma dessas tentativas. O PIS (Programa de Integração Social) visava à compra de ações por trabalhadores nas empresas empregadoras dessa mão-de-obra. O BNH -hoje extinto- era o Banco Nacional da Habitação do povo. Os fundos de ações conhecidos como DL 157 eram aplicações de Imposto de Renda das pessoas em capital empresarial. Custa crer que tamanha variedade de iniciativas, muitas do período militar, tenha se perdido ou se frustrado no seu principio básico de dar acesso à propriedade e ao capital.
É forçoso reconhecer que, no Brasil, sempre se tenta evitar, por todos os meios, as formas de acesso econômico do trabalhador, mesmo quando este é credor da empresa em que trabalha ou de um fundo social. Ainda agora surge mais um caso emblemático, na crise financeira e de gestão da Varig. Nos últimos dois anos de penúria, a empresa foi ressarcindo seus credores -bancos, fornecedores e o próprio governo. A dívida passou a concentrar-se nos ombros dos trabalhadores da companhia, sob a forma de uma insuficiência no fundo de pensão dos seus empregados, da ordem de R$ 2 bilhões de passivo a descoberto. Apesar de ser esse o maior crédito coletivo contra a companhia, a maioria das "soluções" contempladas prima por desconsiderá-lo. Ou seja: a forma imaginada pela sociedade como meio de acumulação previdenciária -o fundo de pensão- está servindo, nesse caso, de poço de frustração do futuro de toda a coletividade de trabalhadores. Defender esse credor trabalhador e proteger sua participação em qualquer alternativa de capitalização futura da Varig seria o ideal "jeffersoniano". Contudo mais uma vez se organizam os mecanismos oportunistas do capitalismo de poucos, a perpetuar o avanço do retrocesso.
Frustra-se, assim, se nada mais for feito, em mais essa oportunidade real de construção de cidadania, aquele ideal expresso, com tanta elegância, por Mercadante, quando sonha para nosso país "... uma nova etapa de nossa história republicana, a república da inclusão, com crescimento para todos". A ver.


Paulo Rabello de Castro, 55, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

E-mail -
rabellodecastro@uol.com.br


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