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OPINIÃO ECONÔMICA
A base teórica das metas de inflação
JOÃO SAYAD
1) sem âncoras, o nível geral
de preços é indeterminado:
se os salários aumentam 10%,
custos aumentam 10%, os preços
aumentam 10% novamente, os
salários aumentam mais 10%, e
assim indefinidamente. Quando
se considera a economia como
um todo, o que é custo para as
empresas é renda para trabalhadores e empresários. Aumentam
custos, aumenta renda e aumenta o custo novamente. Por isso, o
nível geral de preços se move como um cilindro perfeito rolando
sem atrito sobre plano absolutamente liso. O cilindro rola sem
parar com velocidade constante,
que só pode ser alterada por alguma força externa que o desacelere
ou pelo atrito. O nível geral de
preços pode crescer indefinidamente. A taxa de inflação é constante, a menos que alguma força
a acelere ou desacelere.
2) Se todos os pagamentos são
feitos em dinheiro de papel ou de
metal e a quantidade de dinheiro
é constante, logo faltará dinheiro
para pagar preços cada vez mais
altos. O cilindro é freado pela falta de dinheiro, e o nível geral de
preços entra em estado de repouso. Não há inflação. A quantidade de dinheiro é a âncora.
3) Dinheiro é um mito. Você já
viu o dólar, o real ou o euro? Você
já viu santa Edwiges, a padroeira
dos endividados? Você viu apenas
o "santinho", um pedaço de papel
com a imagem da santa. Você
acredita na santa, mas não viu.
Dinheiro é apenas representado
por santinhos, as notas de real ou
dólar.
4) Santinhos podem ser multiplicados sem limite. Dinheiro pode ser multiplicado pelos bancos,
que emprestam o seu depósito à
vista, por fornecedores que vendem a prazo, por trabalhadores
que só recebem no fim do mês, por
cartões de crédito, de débito, opções, derivativos etc. Numa economia em que tudo fosse pago a
crédito, a quantidade de dinheiro
seria incontrolável.
5) Nos anos 70, os monetaristas
insistiam em que o dinheiro era
uma coisa física, um pedaço de
papel que mais dia menos dia teria que aparecer. Insistiam no
controle da quantidade de dinheiro. O Banco Central deveria
ser um robô com a única função
de aumentar a quantidade de dinheiro à taxa igual à do crescimento do PNB (Produto Nacional Bruto). O Banco Central tinha que ser dependente e escravo
dessa regra.
6) Mas qual é a quantidade de
dinheiro que o Banco Central tem
que controlar -a quantidade de
santinhos, os santinhos mais depósitos à vista, isso tudo mais a
dívida pública? M1, M2, M3, M4
ou M5? Com a globalização financeira e a entrada e a saída de
dólares, ficou ainda mais difícil.
A missão é impossível. A receita
foi abandonada.
7) Outra alternativa é fixar a
taxa de câmbio. Os empresários
não podem aumentar o preço por
causa da concorrência dos importados. Se os trabalhadores pedem
aumento de salário, não recebem
porque os empresários não conseguem aumentar o preço. A âncora é a taxa de câmbio. Depois da
globalização financeira, é impossível fixar o câmbio, pois especuladores do mundo inteiro viriam
apostar contra a taxa fixada como abelhas atraídas pelo mel.
8) A Nova Zelândia inventou
nova âncora -as metas de inflação. A Nova Zelândia é o país dos
maoris e era o exemplo preferido
pelos adversários da industrialização, pois era tido como um país
agrícola bem-sucedido. Fazia o
papel que o Sudeste Asiático faz
hoje nas propostas dos neoliberais. O argumento contra política
industrial é Cingapura. O argumento a favor da inflação de metas é a Nova Zelândia. O Oriente
continua mítico.
9) No programa de inflação de
metas, o mito é construído da seguinte forma: a quantidade de
santinhos não precisa mais ser
controlada. Desistiram da teoria
de que a inflação resulta de um
excesso de santinhos emitido pelo
governo. Seja de quem for a culpa,
o valor do dinheiro (santinhos,
depósitos à vista, dívida pública)
tem que se manter estável. Se o
preço do petróleo for multiplicado
por quatro, se as vacas não derem
leite ou se a safra de hortaliças se
estragar por causa das chuvas, o
dinheiro tem que render a taxa de
inflação e mais alguma coisa. Os
donos do dinheiro recebem um
pedaço cada vez maior do PNB.
10) O Copom reúne-se a portas
fechadas e analisa "cientificamente" a inflação passada e a futura. Emite uma bula papal: a inflação que "esperamos" é de 10%,
e o dinheiro dos fiéis que não produzem nem petróleo, nem hortaliça, nem leite crescerá 10%. O dinheiro é um representante do valor à prova de inflação de qualquer tipo.
11) O mito das metas de inflação
é caro. O Brasil gasta 8% do PIB
com juros, pagos com a emissão
de mais santinhos todos os anos.
Seria mais barato acumular reservas, exportando mais. O mito
do real seria garantido por um cofre cheio de dólares, santinhos
mais "fortes" que o nacional.
12) O programa de metas de inflação é redundante porque a âncora que está realmente segurando a inflação é o desemprego.
Com desemprego, aumentam os
custos das matérias-primas, do
petróleo, mas o salário não aumenta. A renda dos trabalhadores não aumenta, nem a da economia. Os preços não podem aumentar.
13) A função dos mitos é despolitizar, transformar o que é político em natural. A liturgia mística
de anunciação da ata do Copom
transforma a decisão mágica em
"científica". Na televisão, o pajé
de cara feia e de direita anuncia
ao lado do cacique de esquerda
que essa é a "única e verdadeira"
solução. O resto é magia, vodu,
populismo e heterodoxia. "Vade
retro".
João Sayad, 57, economista, é professor
da Faculdade de Economia e Administração da USP. Escreve às segundas-feiras, a
cada 15 dias, nesta coluna.
E-mail - jsayad@attglobal.net
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