São Paulo, segunda-feira, 16 de fevereiro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA
A base teórica das metas de inflação

JOÃO SAYAD

1) sem âncoras, o nível geral de preços é indeterminado: se os salários aumentam 10%, custos aumentam 10%, os preços aumentam 10% novamente, os salários aumentam mais 10%, e assim indefinidamente. Quando se considera a economia como um todo, o que é custo para as empresas é renda para trabalhadores e empresários. Aumentam custos, aumenta renda e aumenta o custo novamente. Por isso, o nível geral de preços se move como um cilindro perfeito rolando sem atrito sobre plano absolutamente liso. O cilindro rola sem parar com velocidade constante, que só pode ser alterada por alguma força externa que o desacelere ou pelo atrito. O nível geral de preços pode crescer indefinidamente. A taxa de inflação é constante, a menos que alguma força a acelere ou desacelere.
2) Se todos os pagamentos são feitos em dinheiro de papel ou de metal e a quantidade de dinheiro é constante, logo faltará dinheiro para pagar preços cada vez mais altos. O cilindro é freado pela falta de dinheiro, e o nível geral de preços entra em estado de repouso. Não há inflação. A quantidade de dinheiro é a âncora.
3) Dinheiro é um mito. Você já viu o dólar, o real ou o euro? Você já viu santa Edwiges, a padroeira dos endividados? Você viu apenas o "santinho", um pedaço de papel com a imagem da santa. Você acredita na santa, mas não viu. Dinheiro é apenas representado por santinhos, as notas de real ou dólar.
4) Santinhos podem ser multiplicados sem limite. Dinheiro pode ser multiplicado pelos bancos, que emprestam o seu depósito à vista, por fornecedores que vendem a prazo, por trabalhadores que só recebem no fim do mês, por cartões de crédito, de débito, opções, derivativos etc. Numa economia em que tudo fosse pago a crédito, a quantidade de dinheiro seria incontrolável.
5) Nos anos 70, os monetaristas insistiam em que o dinheiro era uma coisa física, um pedaço de papel que mais dia menos dia teria que aparecer. Insistiam no controle da quantidade de dinheiro. O Banco Central deveria ser um robô com a única função de aumentar a quantidade de dinheiro à taxa igual à do crescimento do PNB (Produto Nacional Bruto). O Banco Central tinha que ser dependente e escravo dessa regra.
6) Mas qual é a quantidade de dinheiro que o Banco Central tem que controlar -a quantidade de santinhos, os santinhos mais depósitos à vista, isso tudo mais a dívida pública? M1, M2, M3, M4 ou M5? Com a globalização financeira e a entrada e a saída de dólares, ficou ainda mais difícil. A missão é impossível. A receita foi abandonada.
7) Outra alternativa é fixar a taxa de câmbio. Os empresários não podem aumentar o preço por causa da concorrência dos importados. Se os trabalhadores pedem aumento de salário, não recebem porque os empresários não conseguem aumentar o preço. A âncora é a taxa de câmbio. Depois da globalização financeira, é impossível fixar o câmbio, pois especuladores do mundo inteiro viriam apostar contra a taxa fixada como abelhas atraídas pelo mel.
8) A Nova Zelândia inventou nova âncora -as metas de inflação. A Nova Zelândia é o país dos maoris e era o exemplo preferido pelos adversários da industrialização, pois era tido como um país agrícola bem-sucedido. Fazia o papel que o Sudeste Asiático faz hoje nas propostas dos neoliberais. O argumento contra política industrial é Cingapura. O argumento a favor da inflação de metas é a Nova Zelândia. O Oriente continua mítico.
9) No programa de inflação de metas, o mito é construído da seguinte forma: a quantidade de santinhos não precisa mais ser controlada. Desistiram da teoria de que a inflação resulta de um excesso de santinhos emitido pelo governo. Seja de quem for a culpa, o valor do dinheiro (santinhos, depósitos à vista, dívida pública) tem que se manter estável. Se o preço do petróleo for multiplicado por quatro, se as vacas não derem leite ou se a safra de hortaliças se estragar por causa das chuvas, o dinheiro tem que render a taxa de inflação e mais alguma coisa. Os donos do dinheiro recebem um pedaço cada vez maior do PNB.
10) O Copom reúne-se a portas fechadas e analisa "cientificamente" a inflação passada e a futura. Emite uma bula papal: a inflação que "esperamos" é de 10%, e o dinheiro dos fiéis que não produzem nem petróleo, nem hortaliça, nem leite crescerá 10%. O dinheiro é um representante do valor à prova de inflação de qualquer tipo.
11) O mito das metas de inflação é caro. O Brasil gasta 8% do PIB com juros, pagos com a emissão de mais santinhos todos os anos. Seria mais barato acumular reservas, exportando mais. O mito do real seria garantido por um cofre cheio de dólares, santinhos mais "fortes" que o nacional.
12) O programa de metas de inflação é redundante porque a âncora que está realmente segurando a inflação é o desemprego. Com desemprego, aumentam os custos das matérias-primas, do petróleo, mas o salário não aumenta. A renda dos trabalhadores não aumenta, nem a da economia. Os preços não podem aumentar.
13) A função dos mitos é despolitizar, transformar o que é político em natural. A liturgia mística de anunciação da ata do Copom transforma a decisão mágica em "científica". Na televisão, o pajé de cara feia e de direita anuncia ao lado do cacique de esquerda que essa é a "única e verdadeira" solução. O resto é magia, vodu, populismo e heterodoxia. "Vade retro".


João Sayad, 57, economista, é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP. Escreve às segundas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

E-mail - jsayad@attglobal.net


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