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ENTREVISTA DA 2ª
PASCAL LAMY
DIRETOR-GERAL DA OMC
Queda no comércio global será "terrível"
Crise implicará a primeira contração do comércio internacional desde 1982
Daniel Munoz - 02.mar.09/Reuters
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O diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, que teme efeito devastador da contração de até 7% do comércio mundial em 2009
O francês Pascal Lamy não esconde seu pessimismo quando fala da contração que o comércio
mundial sofrerá neste ano, a primeira desde
1982. "Será terrível." Como diretor-geral da
OMC (Organização Mundial do Comércio), ele acompanha
de perto o baque sofrido pelo comércio. Seu "faro" indica que
o recuo pode chegar a 7%, previsão ainda pior do que as feitas
pelos organismos internacionais. Além da queda na demanda, o protecionismo e a falta de financiamento ameaçam o comércio. Lamy continua alertando os membros da OMC para
resistir à tentação de fechar seus mercados. "É um tiro no pé."
MARCELO NINIO
DE GENEBRA
Por outro lado, a incerteza no
mercado financeiro é intensa, o
que restringe os canais de crédito que alimentam o comércio. O volume de papéis podres
nos bancos ainda é tão grande,
observa Lamy, que a crise pode
estar apenas na metade. Por isso, a prioridade absoluta do
G20 será focar o sistema bancário de forma clara: "Limpar,
limpar, limpar." Em entrevista
à Folha, Lamy reiterou o elogio
recente que fez ao presidente
Lula na luta contra o protecionismo, pela revogação de barreiras à importação, mas disse
que o país precisa de mecanismos mais eficientes de facilitação de comércio. Para ele, a
presença do Estado brasileiro
no setor ainda é excessiva.
FOLHA - O premiê britânico, Gordon Brown, alertou que o mundo
corre o risco de desglobalização. O
sr. concorda?
PASCAL LAMY - Depende do que
você chama de desglobalização.
Se é o encolhimento do comércio, é óbvio que acontecerá. Os
números do comércio vão virar. Agora que a economia
mundial terá crescimento zero
ou negativo, o comércio terá
contração de 6% ou 7%. Mas a
globalização é muito mais do
que comércio. É uma reforma
total do processo produtivo,
com um gerenciamento global
de oferta e demanda.
Quando os EUA importam
um Ipod da China por US$ 100,
há US$ 5 de valor agregado chinês. Isso é globalização. Haverá
menos Ipods exportados da
China para os EUA. Mas isso
não muda o fato de que os
meios de produção mudaram, e
que os países aproveitaram a
sua vantagem comparativa. Veja o exemplo do Brasil em alimentos. As exportações de alimentos do Brasil vão cair com a
queda da demanda. Mas isso
significa que a vantagem comparativa do Brasil acabou? Não.
O processo [da globalização] é
bem mais sofisticado.
FOLHA - É irreversível?
LAMY - Eu acho que sim. Mas é
claro que os ganhos da globalização serão reduzidos, assim
como a eficiência gerada pelas
mudanças na produção. Com
isso, cai o volume do comércio.
Haverá menos crescimento
econômico e, com isso, mais
pobreza. É óbvio que os países
em desenvolvimento, cuja dependência desses fluxos era
maior, serão os mais atingidos.
FOLHA - Isso não pode gerar uma
onda de desconfiança com o livre comércio internacional?
LAMY - O impulso de curto prazo para a proteção é compreensível em tempos de dificuldades sociais e econômicas. Mas
há muitas formas melhores de
proteger as pessoas, seus empregos e o consumo dos pobres,
do que o protecionismo. À primeira vista, algumas pessoas
dirão que é melhor ser menos
dependente do comércio. Mas
a médio e longo prazos isso significa menos crescimento. Os
países que se apoiaram mais no
comércio cresceram 2% a mais
do que a média. É claro que em
tempos de recessão há um contrachoque. Mas isso não significa que um país deve renunciar a
aumentar sua vantagem comparativa no comércio mundial.
FOLHA - Sua previsão [de retração
de 7%] para o comércio mundial em
2009 é mais pessimista que a do
FMI, de contração de 5%?
LAMY - É a minha expectativa.
Passo metade do tempo falando com gente que lida com comércio em vários continentes,
e o meu faro diz que será terrível. A questão não é se o comércio mundial vai ou não encolher. A questão é se vai contrair
por razões além da queda na
demanda. E as outras razões
podem ser o protecionismo e a
falta de financiamento.
FOLHA - Cláusulas como o "Buy
American", do pacote de estímulo
dos EUA, são um sinal preocupante?
LAMY - De certa forma é inevitável. Políticos são eleitos por
seus eleitorados, não pelos vizinhos. Eu digo a eles que isso
não combina com o planeta de
hoje, em que é preciso agir em
conjunto. A boa notícia é que o
protecionismo de alta intensidade, como o dos anos 30, está
descartado, graças às disciplinas a que os países se submeteram na OMC. A má notícia é
que ainda há espaço de ação para os membros da OMC. As pessoas tendem a focalizar as tarifas, mas há formas ocultas e sutis de protecionismo, como as
barreiras não-tarifárias, licenças. Ocorre que mesmo o protecionismo de baixa intensidade
pode ter um grande impacto,
pois nossas economias estão 20
vezes mais interdependentes
do que nos anos 30. Se eu fizer,
outros imediatamente farão. É
um tiro no próprio pé. Na OMC
temos regras que proíbem subsídios à indústria e à agricultura. Mas não há regras específicas sobre serviços, como os
bancários. É mais uma evidência de que o sistema financeiro
não é suficientemente regulado. O órgão internacional de
doenças animais é mais bem regulado que os bancos.
FOLHA - O sr. disse que o presidente Lula merecia um prêmio pelo antiprotecionismo. Mas na revisão da
política comercial do Brasil (TPR, na
sigla em inglês), apresentada há
poucos dias, a OMC disse que o Brasil precisa se abrir mais.
LAMY - Uma coisa é como as
pessoas estão lidando com a
crise. A outra é o TPR, que leva
tempo. Eu citei o presidente
Lula porque ele foi um exemplo
de ação. Num dia o licenciamento estava no "Diário Oficial" e no outro ele cancelou tudo. Lula agiu de acordo com o
que fala, foi coerente.
Quanto ao TPR, houve algumas críticas, mas de modo geral
o balanço é positivo, a gestão
macroeconômica do Brasil é
boa. Um exemplo é que o Banco
Central reduziu os juros em
plena crise. É um comportamento normal, mas sabemos
que no passado ocorria o contrário. Ou seja, o país está se
normalizando, embora os juros
ainda estejam altos.
Uma área em que há problemas é a facilitação de comércio.
Se eu tivesse que aconselhar o
Brasil sobre sua política econômica, eu diria para criar um
grande programa de facilitação
de comércio. O fato de mais de
30% das linhas tarifárias, nesse
país emergente e moderno, ainda precisarem de licenças não-automáticas para importação
não combina. Há uma discrepância entre a força da economia e do comércio, e sua liderança na OMC, e o fato de 30%
de linhas tarifárias ainda precisarem do carimbo de alguém
em um escritório. É um problema administrativo, que por algum motivo persiste.
FOLHA - A presença do Estado é
grande demais?
LAMY - Não sou um especialista, mas isso me parece claro.
FOLHA - O Brasil está preparado
para enfrentar a crise?
LAMY - Não sei. Quem sabe
quando teremos atingido o fundo do poço? Isso só acontecerá
quando as pessoas estiverem
convencidas de que o sistema
financeiro está limpo. Quando
olhamos os números do FMI,
vemos que o volume de ativos
tóxicos é superior a US$ 2 trilhões e o volume de perdas até
agora é US$ 800 bilhões. Isso
significa que ainda não estamos
nem na metade da limpeza, que
é um pré-requisito para o fim
da crise. Digamos que um exportador chinês tem um carregamento pronto para os EUA.
Ele precisa de uma carta de crédito e recebe uma proposta de
um banco dos EUA, mas a rejeita, pois teme que todos os bancos americanos irão quebrar. E
acaba mantendo seu carregamento. Enquanto estivermos
nessa situação, será difícil sair
da crise. Precisamos limpar o
sistema financeiro e essa tem
de ser a prioridade do G20: limpar, limpar, limpar. Não importa como isso é feito, com bancos
podres, nacionalização etc.
FOLHA - A queda no PIB do Brasil
pode induzir ao protecionismo?
LAMY - Não é o que o presidente Lula diz. Haverá pressões, tenho certeza. A questão é se você
resiste às pressões em nome do
bem coletivo, que é manter o
comércio aberto durante essa
crise. Isso é importante principalmente para os países em desenvolvimento. O principal estímulo para esses países não é
seu orçamento, mas o comércio. É por isso que a conclusão
da Rodada Doha é agora uma
prioridade ainda maior do que
no ano passado. Os efeitos da
crise para o Brasil serão terríveis, mas muito piores nos países mais pobres. Parece óbvio
que a África será uma das grandes vítimas da crise, apesar de
não tê-la iniciado.
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