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OPINIÃO ECONÔMICA
Uma vaga de fundo
RUBENS RICUPERO
Amanhã no México, hoje no
Peru, ontem na Bolívia, anteontem no Brasil, na Argentina,
no Equador, no Uruguai, na Venezuela, as eleições começam a abrir
o caminho do poder a setores sociais antes periféricos, embora majoritários. O fenômeno é suficientemente novo e disseminado na região para inspirar generalizações
simplificadoras, como a de que um
inédito ciclo de governos de esquerda passaria a dominar a América
Latina.
O que preocupa a alguns não é a
esquerda, mas a afirmação do neopopulismo. Em grau variável, estariam presentes em todas essas mudanças as características clássicas
do populismo: o líder ou caudilho
carismático que se comunica diretamente com a massa, sem depender de partidos; a mobilização permanente e a ação direta (ocupação
de estradas, corte de oleodutos, invasão de terras), chegando à derrubada de governos, como na Argentina, no Equador, na Bolívia,
no Peru de Fujimori; a simplificação de problemas por meio de fórmulas como as nacionalizações, o
distributivismo, o desenvolvimentismo indiferente à inflação.
Essa é leitura possível, mas que se
detém na superfície da tendência.
Uma análise rigorosa logo identifica na sua raiz poderosa vaga de
fundo impulsionada para cima pelas camadas mais baixas da estrutura social. Essas camadas não são
formadas, como na visão marxista,
pelo proletariado industrial urbano, em declínio num continente
desindustrializado ou de industrialização truncada. Há 60 anos,
era, de fato, o operariado sindicalizado que dava vida ao peronismo
ou ao getulismo. Hoje, a pressão
pela mudança vem de massas desempregadas ou ocupadas na economia informal das periferias das
grandes cidades -a América Latina já tem 50 cidades com 1 milhão
ou mais de habitantes.
A urbanização, somada à incompleta transformação da estrutura produtiva, é a principal explicação do fenômeno. Em alguns
países, os fortes contingentes indígenas imprimem singularidade
própria tanto a reivindicações de
comunidades urbanas como a de
El Alto, em La Paz, quanto às de
movimentos camponeses no altiplano boliviano, peruano, equatoriano ou na Guatemala. No essencial, o problema não é étnico nem
rural, mas socioeconômico: a
transformação produtiva truncada não foi capaz de absorver com
empregos o explosivo aumento da
população do campo.
Um dos resultados é a migração
que incha as periferias e, na ausência de emprego formal, a saída para o exterior, válvula de escape preferida no México, na América Central, no Caribe e, cada vez mais,
nos outros: o Equador tem cerca de
16% da força de trabalho fora do
país. Os que ficam votam pelo mexicano López Obrador, pelo peruano Ollanta, pelo venezuelano Chávez, pelo boliviano Evo Morales,
pelo brasileiro Lula e assim por
diante.
A América Latina não conseguiu
reproduzir a seqüência virtuosa
dos estágios pelos quais a Revolução Industrial enriqueceu, no século 19, os países ocidentais. Onde ela
se assemelha, porém, à experiência
ocidental é nas conseqüências políticas da urbanização. O que temos
por aqui é uma onda de fundo que
traz ao primeiro plano atores sociais das periferias urbanas. Não
importa se os líderes são autênticos
ou apenas souberam dar-lhe expressão político-eleitoral, sintonizando-se com a linguagem e o estilo das periferias, assim como os
pentecostais canalizaram sua expressão religiosa melhor do que os
católicos.
Os atores sociais emergentes desestabilizam a antiga ordem. Foi
assim na Europa, onde provocaram os ciclos revolucionários de
1830, de 1848, da Comuna de Paris.
É verdade que não havia então democracia de massas, pois poucos
podiam votar. Hoje, ela apressa na
América Latina a chegada das
massas ao poder. Dependerá, como
sempre, da sabedoria e do equilíbrio dos dirigentes se a transição se
fará com maior ou menor violência, mais acertos do que erros e um
mínimo de perdas econômicas e
turbulência. Chorar não adianta:
democracia significa dar o poder
às maiorias periféricas.
Rubens Ricupero, 69, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto
Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das
Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.
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