São Paulo, domingo, 16 de maio de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Desenvolvimento com transnacionais

LUCIANO COUTINHO

As empresas transnacionais ocupam posição relevante na economia brasileira há várias décadas e, especialmente, desde o governo Kubitschek. Na segunda metade dos anos 90, a sua presença aumentou significativamente no setor de serviços (telecomunicações, setor elétrico, cabotagem, varejo, banca) em razão da política de privatização e da grave fragilização das contas externas no governo FHC, que deixou o país de joelhos. Esta última condição, resultante da calibragem sobrevalorizada, nefasta e oportunista da âncora cambial que viabilizou o Plano Real, submeteu as autoridades econômicas brasileiras a vender atabalhoadamente ativos públicos -sem nenhuma estratégia- para atrair capitais externos e os induziu a tolerar uma onda maciça de desnacionalizações, também para atrair o ingresso de capitais. Infelizmente, houve pouco investimento novo -predominou a transferência de propriedade de ativos já existentes. E, lamentavelmente, para pagar, em parte, os estratosféricos encargos de juros da dívida pública que se expandiu explosivamente entre 1994 e 2002. Essa imperdoável mácula do governo FHC ficará indelevelmente registrada nos anais da história brasileira.
Assinalado esse sacrifício estúpido (nada contra a empresa estrangeira, apenas contra a forma deletéria de alienação de marcas, ativos e empresas brasileiras que foram construídas após décadas de acumulação empresarial), resta lidar com a realidade de que as transnacionais têm uma presença ainda mais importante na nossa economia. Entre os países em desenvolvimento, o Brasil ostenta o segundo lugar em matéria de estoque de capital estrangeiro (atrás apenas da China) e abriga filiais de quase todas as 500 maiores empresas mundiais listadas na "Fortune". Não há, portanto, como pensar o desenvolvimento do país sem compreender o papel, a relevância e as oportunidades de expansão das empresas estrangeiras aqui sediadas. Não há como ignorar o fato de que dominam um conjunto-chave de setores industriais e de serviços.
Até o início dos anos 80, o fator determinante de atração das empresas estrangeiras foi o mercado interno resguardado pela política protecionista de substituição de importações. Porém, no decorrer da longa crise brasileira dos anos 80, 90 e do início do século 21, as condições de concorrência global mudaram significativamente. Aumentou a concentração dos mercados e mais ainda a centralização da propriedade do capital na grande maioria dos setores industriais e de serviços; cresceu o papel mundial das transnacionais nos setores de comércio/investimentos; aprofundou-se a divisão do trabalho dentro das redes internacionais das grandes empresas. Predominantemente as transnacionais têm como objetivo maximizar a sua eficiência em escala mundial, buscando a divisão de trabalho mais produtiva possível -especializando e integrando as suas atividades (insumos, produtos finais, serviços) de forma a obter a máxima rentabilidade.
Os países em desenvolvimento adequaram as suas políticas de atração de capitais a esse cenário de crescente integração. Apenas a Coréia do Sul "escapou", pois -notavelmente- conseguiu nos anos 90 criar as suas próprias transnacionais, tornando-se uma investidora internacional. A China -que também persegue um projeto nacional de desenvolvimento- adotou uma estratégia de joint-ventures e de associações entre as transnacionais e suas grandes empresas. O Brasil, imobilizado pela crise inflacionária e, depois, pelos efeitos nocivos da sobrevalorização cambial não se preparou e usufruiu de forma muito limitada do grande ciclo de investimentos produtivos das transnacionais nos anos 90. Agora, depois de duas décadas e meia sem política de desenvolvimento e sem política industrial, o governo Lula tateia em busca de uma estratégia. O arcabouço de instrumentos e instituições que conduziu a política de industrialização até os anos 80 foi desmantelado pela crise e pelo neoliberalismo dos anos 90 e nada foi posto em seu lugar.
Uma estratégia desenvolvimentista transita pela construção de instrumentos contemporâneos de política de competitividade e, necessariamente, por uma política ativa de cooperação com o capital estrangeiro. Desde logo é altamente interessante para o país a valorização das filiais brasileiras na divisão mundial do trabalho. Estas deveriam ser auxiliadas pela política industrial a obter "mandatos" para localizar aqui a produção e a exportação de produtos dinâmicos ou de partes/insumos destes. Deveriam ainda receber estímulos para aprofundar as suas atividades tecnológicas e também para aumentar no país a agregação de valor em suas linhas de produtos. As transnacionais podem contribuir muito para ampliar os fluxos comerciais e para sustentar um superávit comercial elevado em manufaturas. O potencial existe, o desafio está posto!


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).


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