São Paulo, Domingo, 16 de Maio de 1999
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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Bate, mas escuta

ALOIZIO MERCADANTE
O empenho dos bancos, do governo e de sua base parlamentar em abafar as graves denúncias sobre o comportamento de alguns grandes bancos na crise cambial é absolutamente inaceitável. Tenho sido duramente atacado, as investigações não avançam e o governo prefere o papel de pizzaiolo do que o de suspeito sob mira da CPI.
Esse cenário me lembra uma passagem na antiga Grécia, quando o general ateniense Temístocles, 525 a.C., defendia a resistência grega contra a invasão de Xerxes. O comandante de todas as forças confederadas, general espartano Euribíades, que sustentava a posição de retirada das forças gregas, no calor do debate levanta seu bastão de comando e parte para atingir o rosto de seu oponente. E Temístocles, calmo e senhor de seus argumentos, responde: bate, mas escuta! É a mesma resposta que ofereço aos meus oponentes.
Todos os fatos que estão sendo apurados vieram à tona com as minhas denúncias de 23 de fevereiro, incluindo o caso Marka-FonteCindam. Meu depoimento recente na CPI foi todo construído com dados e fatos, na perspectiva de contribuir para uma estratégia consistente de investigação da CPI.
Nos dias anteriores ao depoimento reiterei em diversas oportunidades o caráter da minha apresentação, totalmente oposto a qualquer forma de denuncismo oportunista ou bombástico, como foi difundido e aparentemente temiam, sabe lá por quais razões, algumas esferas do governo. A CPI não pode se ater aos graves casos Marka e FonteCindam. Seu grande desafio histórico é mergulhar no ataque especulativo que o país sofreu para identificar responsabilidades e elaborar um novo marco institucional para o desempenho da Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F), do Banco Central e do sistema financeiro. O país não aguenta mais transferir tanta renda para o sistema financeiro e jamais desviou tantos recursos públicos para tão poucos bancos, em tão pouco tempo, como nessa crise cambial.
Minha primeira tese foi demonstrar que existem graves indícios de vazamentos de informação privilegiada que teriam propiciado ganhos espetaculares para alguns bancos e que, ao contrário da versão oficial, não houve, no mercado, um "comportamento de manada". Havia um processo de fuga de capitais, mas os acontecimentos dos dias 11 e 12 de janeiro, que antecedem a desvalorização, são injustificáveis e agravaram o ataque especulativo que o país sofreu.
Apresentei uma tabela do mercado pronto do dólar (livre e flutuante) demonstrando uma situação atípica, marcada pela mudança de posição vendida para comprada no dia 12 de, pelo menos, seis instituições bancárias. Demonstrei também que na BM&F 49 bancos perderam R$ 3,2 bilhões entre 12 e 2 de fevereiro, reforçando a tese de que nem todos sabiam. Expliquei que as perdas não significam necessariamente prejuízo, porque podiam ter obtido ganhos em outras aplicações, como os títulos públicos cambiais (como exemplo utilizei o caso do Grupo Votorantim).
Entre os que ganharam, 24 bancos explicavam 95% das transações, com um volume de R$ 10,1 bilhões. Novamente expliquei que ganho na BM&F não significava lucro. Parte dos investimentos era de operações de "hedge" (proteção), e o que realmente determinou esse ganho espetacular foi a maxidesvalorização.
A resposta do governo foi apresentar uma tabela com erros grosseiros, como misturar pessoas físicas e jurídicas, com base na qual o líder do governo afirmava que foram "só" R$ 5,2 bilhões os ganhos com o dólar. O governo errou na tabela e inflou as aplicações com juros. Ganho com juros sempre ocorreu neste governo; ataque especulativo é quando o mercado não quer mais juros e exige o câmbio. A própria variação na taxa de juros se deve à maxidesvalorização.
A manobra do governo ajudou a confundir e fez sumir da imprensa o fundamental dessa tabela, que era o fato de o governo, por meio do Banco do Brasil, com a conta 70.001 na BM&F, ter perdido R$ 7,4 bilhões do "meu, do seu, do nosso dinheiro", transferidos para os bancos que apostaram contra o real, alguns comprando grandes volumes de dólar futuro um dia antes da desvalorização.
Outro aspecto relevante da exposição foi demonstrar que o lucro declarado pelos bancos não é necessariamente o lucro real. Apresentei uma tabela que apresentava os lucros extraordinários de alguns fundos de capital estrangeiro, com rentabilidade superior a 100%, onde em sua grande maioria o único cotista é o próprio banqueiro ou a matriz do banco. Esse é um dos mecanismos por meio dos quais os bancos transferiram imediatamente seus lucros para o exterior sem recolher o Imposto de Renda devido. Afirmei que, dos 61 maiores bancos, 42,8% simplesmente pagaram 0% de IR em 1998.
Apresentei também uma tabela do lucro declarado pelos bancos, onde o Morgan Guaranty Trust, que comprou uma grande quantia de contratos de dólar futuro na BM&F, apresenta um lucro de R$ 275,9 milhões em janeiro, 295% o patrimônio líquido do banco e oito vezes o lucro de 1998! O outro banco do grupo, JP Morgan, declarou um lucro de R$ 193,4 milhões, ou seja, 172,4% o patrimônio. O Morgan, que vinha reduzindo sua participação no Brasil, fez uma fezinha no dia 12 e ganhou pelo menos mais de dois bancos em 20 dias de desvalorização, além de ter comprado "bradies" em condições muito favoráveis do Banespa sem licitação ou concorrência.
Destaquei também o caso do Chase Manhattan, que, além de comprar R$ 1,2 bilhão de "bradies", por meio dos fundos de investimento no exterior (Fiex) no dia 12, foi um dos bancos que organizou o processo de desestabilização do sistema no dia 29 de janeiro, forçando a desvalorização do real para se beneficiar da Ptax, taxa do último dia útil que definiria os ganhos na BM&F. Gostaria de acrescentar que no dia 22 de janeiro o boletim Chase Securities, em Nova York, publicou um artigo "Time for a domestic Brady Plan", de seu analista Lawrence Brainard, difundindo o pânico em nível internacional ao afirmar que um novo "confisco" da moeda era eminente. No dia 29 a onda crescia, milhares de clientes sacavam suas aplicações e perdiam a rentabilidade do mês, enquanto na BM&F os bancos comprados em dólares maximizavam seus ganhos.
Disse também que meus dados subestimavam o impacto da desvalorização porque não estava analisando os títulos públicos indexados em dólar no valor de R$ 68 bilhões, nem as operações de swaps, mas seguramente o impacto da desvalorização foi superior a R$ 49 bilhões.
Os indícios de "inside information" e manipulação do mercado por parte do grupo Morgan e Chase Manhattan, entre outros, poderiam iniciar um trabalho mais amplo e sério de investigação da CPI, que já tem todos os elementos para enquadrar na lei de improbidade administrativa os casos Marka, FonteCindam e Chico Lopes.
Ocorre que o governo FHC e sua base de sustentação na CPI preferem abafar as denúncias do que investigar com profundidade todo o ataque especulativo que o país sofreu. A própria viagem de FHC aos EUA é mais um sinal claro que vamos nos submeter passivamente a tudo que os grandes bancos internacionais fizeram com o país.
E, a propósito, o general Temístocles terminou seu discurso, venceu o debate, e a Grécia resistiu e venceu a guerra. O Brasil poderia inspirar-se nesse exemplo e mudar sua relação com o sistema financeiro mundial. O Brasil deveria preparar um dossiê sobre a atuação dos bancos e apresentá-lo em fóruns internacionais, fato que seguramente estimularia muitos outros "emergentes", também vítimas do capital especulativo, a fazer o mesmo.
A agenda para acabar com os 37 paraísos fiscais internacionais que lavam dinheiro sujo e estimulam a evasão fiscal, o imposto Tobin e novos mecanismos de controle sobre o capital financeiro internacional são grandes temas deste final de século. Não podemos continuar reféns de um capital predatório, que não cria emprego, não constrói o país e vulnerabiliza nossas frágeis finanças públicas. Mas atitudes como essa são de homens públicos com compromisso com a história, muito distante do comportamento medíocre de alguns órgãos de imprensa e da elite dominante do país.


Aloizio Mercadante Oliva, 44, economista e professor universitário licenciado da PUC-SP e Unicamp, foi candidato a vice-presidente da República com Lula em 1994, é vice-presidente nacional do PT, deputado federal e presidente da Comissão de Economia, Indústria e Comércio da Câmara dos Deputados.


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