São Paulo, quinta, 16 de julho de 1998

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OPINIÃO ECONÔMICA
Um episódio econômico-esportivo

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

O episódio ocorreu há muitos anos. Teve grande repercussão na época, mas é tão antigo que está praticamente esquecido.
Aconteceu com um país dependente e subdesenvolvido, que afogava no esporte as suas mágoas profundas e as suas frustrações nunca cicatrizadas. Mais especificamente uma modalidade esportiva muito popular na época, o cuspe à distância.
Esse esporte era popularíssimo no país e também no resto do mundo. A copa mundial de cuspe à distância era, na época, um dos eventos esportivos de maior importância. E o país em questão era líder mundial.
As cusparadas dos seus craques alcançavam distâncias inacreditáveis. A sua equipe impunha respeito. Fora quatro vezes campeã do mundo e nunca sofrera uma derrota grave na copa.
Aproximava-se mais uma copa e o país inteiro, incensado pelos meios de comunicação de massa, aguardava ansioso a consagração do pentacampeonato. A maioria da população não se dera conta, contudo, de que o cuspe à distância havia passado por uma mudança profunda nos anos anteriores. Mercantilizara-se de forma radical. Transformara-se em um empreendimento multibilionário em que grandes conglomerados empresariais, redes de televisão e governos competiam na exploração do sentimento patriótico das populações.
Naquele tempo, a economia mundial passava por uma fase singular. Quase tudo se fazia em nome do mercado. Em muitos países, a regulamentação e a intervenção estatal haviam adquirido péssima reputação. Aparecera inclusive uma estranha doutrina, conhecida como "neoliberalismo", que pregava o máximo de liberdade para o capital e o mínimo de presença do Estado.
Apesar do seu caráter anacrônico, essa doutrina desempenhava um papel ideológico importante, sobretudo nos países menos desenvolvidos: abrir caminho para a livre operação dos grandes interesses empresariais, particularmente as corporações dos países desenvolvidos.
No país tetracampeão do cuspe à distância, o quadro econômico e político era desanimador. O presidente da República, um antropólogo que se consagrara pelas suas pesquisas sobre comportamento dependente e subalterno nas tribos da Polinésia, transportara com afinco as suas conclusões teóricas para o campo político e fazia um dos governos mais subordinados e entreguistas da história. Em consequência, o país havia sido engolfado por um intenso processo de desnacionalização, que resultara no desaparecimento ou na venda a capitais estrangeiros de boa parte das empresas públicas e privadas.
Nesse ambiente, a seleção nacional de cuspe à distância dificilmente poderia conservar intactas as suas tradições. Resolveu assinar um contrato milionário de patrocínio com uma grande empresa norte-americana: a United Bananas, especializada na produção e comercialização do produto em escala planetária.
O contrato era grande, mas as exigências também. A United Bananas interferia constantemente na seleção. Fez também contratos individuais de patrocínio com alguns jogadores da seleção e vinculava a sua marca a esses nomes por meio de gigantescas campanhas publicitárias. Evidentemente, os conglomerados concorrentes não ficaram inertes: contrataram individualmente outros jogadores de destaque da seleção.
Em suma: a seleção transformara-se em palco de disputa de conglomerados estrangeiros concorrentes. Descaracterizara-se progressivamente como símbolo nacional. A coisa chegou a tal ponto que a United Bananas exigiu que a "grife" da empresa, uma previsível banana, aparecesse na própria camisa da seleção.
Estava armado o cenário para que ocorresse um dos episódios mais deploráveis da história esportiva do país. Imaginem vocês que poucas horas antes da finalíssima do campeonato mundial daquele ano o principal jogador da equipe e carro-chefe da propaganda da United Bananas apareceu com um problema de saúde aparentemente grave, até hoje não inteiramente esclarecido.
Num primeiro momento, o treinador da equipe tomou a decisão sensata e anunciou a substituição do garoto-propaganda da United Bananas. Foi um deus-nos-acuda. O presidente da Federação Nacional de Cuspe à Distância baixou imediatamente no vestiário. Não se sabe bem se por iniciativa própria ou em resposta a uma pressão do patrocinador, exigiu a escalação do craque. O treinador resolveu engolir em seco e modificar novamente o time.
Explodiu uma crise no vestiário da seleção. A equipe, já tensa com o problema de saúde da sua principal estrela, via-se de repente confrontada com a escalação goela abaixo de um jogador visivelmente sem condição de jogo, com possíveis riscos para a sua saúde.
A equipe rachou. Jogadores patrocinados por outras empresas ou sem patrocínio individual rebelaram-se contra a decisão. Enquanto o time adversário fazia o seu aquecimento e os exercícios preliminares de salivação, o tetracampeão vivia momentos de guerra civil (ou comercial) no vestiário. Não teve nem tempo de subir para o aquecimento.
Resultado: o time entrou em campo traumatizado, dividido e derrotado. A sua atuação, principalmente no primeiro tempo, foi abaixo da crítica. Nenhum dos 11 jogadores conseguiu cuspir direito. A estrela do time estava irreconhecível. Só faltou entrar em campo de maca. Mesmo assim, ficou até o final do jogo.
Em consequência, a seleção sofreu uma derrota acachapante, arrasadora, sem precedentes. O povo do país, chocado com o desempenho apagadíssimo da seleção, passou a acreditar que o time fora comprado pelo adversário.
Embora visivelmente absurda, a hipótese tinha um fundo de verdade. Numa época em que tudo estava à venda no país, não seria de esperar que a seleção nacional escapasse à regra. Fora vendida não ao adversário, mas ao patrocinador.
Aos poucos a opinião pública foi percebendo o que acontecera. Abriu-se um inquérito parar apurar responsabilidades. Surgiu até um movimento nacional para tirar a logomarca da United Bananas da camisa da seleção. O escândalo foi tamanho que marcou o início de uma reação nacional contra a venda sistemática do país. Nunca mais o entreguismo foi o mesmo naquele país.
Como se diz no cinema americano, e por incrível que possa parecer, "this is a true story". Só no último parágrafo é que a memória pode ter me traído.


Paulo Nogueira Batista Jr., 43, economista e professor da Fundação Getúlio Vargas, escreve às quintas-feiras nesta coluna. E-mail: pnbjr@ibm.net


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