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OPINIÃO ECONÔMICA
Um episódio econômico-esportivo
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
O episódio ocorreu há muitos
anos. Teve grande repercussão
na época, mas é tão antigo que
está praticamente esquecido.
Aconteceu com um país dependente e subdesenvolvido,
que afogava no esporte as suas
mágoas profundas e as suas
frustrações nunca cicatrizadas.
Mais especificamente uma modalidade esportiva muito popular na época, o cuspe à distância.
Esse esporte era popularíssimo no país e também no resto
do mundo. A copa mundial de
cuspe à distância era, na época,
um dos eventos esportivos de
maior importância. E o país em
questão era líder mundial.
As cusparadas dos seus craques alcançavam distâncias
inacreditáveis. A sua equipe
impunha respeito. Fora quatro
vezes campeã do mundo e nunca sofrera uma derrota grave na
copa.
Aproximava-se mais uma copa e o país inteiro, incensado
pelos meios de comunicação de
massa, aguardava ansioso a
consagração do pentacampeonato. A maioria da população
não se dera conta, contudo, de
que o cuspe à distância havia
passado por uma mudança profunda nos anos anteriores. Mercantilizara-se de forma radical.
Transformara-se em um empreendimento multibilionário
em que grandes conglomerados
empresariais, redes de televisão
e governos competiam na exploração do sentimento patriótico das populações.
Naquele tempo, a economia
mundial passava por uma fase
singular. Quase tudo se fazia
em nome do mercado. Em muitos países, a regulamentação e a
intervenção estatal haviam adquirido péssima reputação.
Aparecera inclusive uma estranha doutrina, conhecida como
"neoliberalismo", que pregava o
máximo de liberdade para o capital e o mínimo de presença do
Estado.
Apesar do seu caráter anacrônico, essa doutrina desempenhava um papel ideológico importante, sobretudo nos países
menos desenvolvidos: abrir caminho para a livre operação
dos grandes interesses empresariais, particularmente as corporações dos países desenvolvidos.
No país tetracampeão do cuspe à distância, o quadro econômico e político era desanimador. O presidente da República,
um antropólogo que se consagrara pelas suas pesquisas sobre
comportamento dependente e
subalterno nas tribos da Polinésia, transportara com afinco as
suas conclusões teóricas para o
campo político e fazia um dos
governos mais subordinados e
entreguistas da história. Em
consequência, o país havia sido
engolfado por um intenso processo de desnacionalização, que
resultara no desaparecimento
ou na venda a capitais estrangeiros de boa parte das empresas públicas e privadas.
Nesse ambiente, a seleção nacional de cuspe à distância dificilmente poderia conservar intactas as suas tradições. Resolveu assinar um contrato milionário de patrocínio com uma
grande empresa norte-americana: a United Bananas, especializada na produção e comercialização do produto em escala
planetária.
O contrato era grande, mas as
exigências também. A United
Bananas interferia constantemente na seleção. Fez também
contratos individuais de patrocínio com alguns jogadores da
seleção e vinculava a sua marca
a esses nomes por meio de gigantescas campanhas publicitárias. Evidentemente, os conglomerados concorrentes não
ficaram inertes: contrataram
individualmente outros jogadores de destaque da seleção.
Em suma: a seleção transformara-se em palco de disputa de
conglomerados estrangeiros
concorrentes. Descaracterizara-se progressivamente como
símbolo nacional. A coisa chegou a tal ponto que a United
Bananas exigiu que a "grife" da
empresa, uma previsível banana, aparecesse na própria camisa da seleção.
Estava armado o cenário para
que ocorresse um dos episódios
mais deploráveis da história esportiva do país. Imaginem vocês que poucas horas antes da
finalíssima do campeonato
mundial daquele ano o principal jogador da equipe e carro-chefe da propaganda da
United Bananas apareceu com
um problema de saúde aparentemente grave, até hoje não inteiramente esclarecido.
Num primeiro momento, o
treinador da equipe tomou a
decisão sensata e anunciou a
substituição do garoto-propaganda da United Bananas. Foi
um deus-nos-acuda. O presidente da Federação Nacional
de Cuspe à Distância baixou
imediatamente no vestiário.
Não se sabe bem se por iniciativa própria ou em resposta a
uma pressão do patrocinador,
exigiu a escalação do craque. O
treinador resolveu engolir em
seco e modificar novamente o
time.
Explodiu uma crise no vestiário da seleção. A equipe, já tensa com o problema de saúde da
sua principal estrela, via-se de
repente confrontada com a escalação goela abaixo de um jogador visivelmente sem condição de jogo, com possíveis riscos
para a sua saúde.
A equipe rachou. Jogadores
patrocinados por outras empresas ou sem patrocínio individual rebelaram-se contra a decisão. Enquanto o time adversário fazia o seu aquecimento e
os exercícios preliminares de salivação, o tetracampeão vivia
momentos de guerra civil (ou
comercial) no vestiário. Não teve nem tempo de subir para o
aquecimento.
Resultado: o time entrou em
campo traumatizado, dividido
e derrotado. A sua atuação,
principalmente no primeiro
tempo, foi abaixo da crítica.
Nenhum dos 11 jogadores conseguiu cuspir direito. A estrela
do time estava irreconhecível.
Só faltou entrar em campo de
maca. Mesmo assim, ficou até o
final do jogo.
Em consequência, a seleção
sofreu uma derrota acachapante, arrasadora, sem precedentes.
O povo do país, chocado com o
desempenho apagadíssimo da
seleção, passou a acreditar que
o time fora comprado pelo adversário.
Embora visivelmente absurda, a hipótese tinha um fundo
de verdade. Numa época em
que tudo estava à venda no
país, não seria de esperar que a
seleção nacional escapasse à regra. Fora vendida não ao adversário, mas ao patrocinador.
Aos poucos a opinião pública
foi percebendo o que acontecera. Abriu-se um inquérito parar
apurar responsabilidades. Surgiu até um movimento nacional
para tirar a logomarca da United Bananas da camisa da seleção. O escândalo foi tamanho
que marcou o início de uma
reação nacional contra a venda
sistemática do país. Nunca
mais o entreguismo foi o mesmo
naquele país.
Como se diz no cinema americano, e por incrível que possa
parecer, "this is a true story". Só
no último parágrafo é que a
memória pode ter me traído.
Paulo Nogueira Batista Jr., 43, economista e
professor da Fundação Getúlio Vargas, escreve às quintas-feiras nesta coluna.
E-mail: pnbjr@ibm.net
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