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São Paulo, quinta-feira, 16 de outubro de 2003

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LUÍS NASSIF

A quadrilha do refrigerante

Os intrépidos repórteres identificaram o movimento criminoso e ficaram "de campana" -como se diz no jargão técnico da polícia. Eram os rapazes que assassinaram o índio Galdino, cumprindo pena em prisão semi-aberta e cometendo atos suspeitos.
Um dos rapazes saiu do presídio de carro. Quando vi a cena, filmada clandestinamente e com arrojo, imaginei que a reportagem estaria atrás de um desses carros comprados sem tributação por grupos que se especializaram em liminares contra o contribuinte substituto -não pagam na compra nem na venda. Há casos desses em todo o país, e aquele carro poderia ser um deles, pensei eu, dado o aparato envolvido na investigação.
O rapaz parou em um posto de gasolina e abasteceu o carro. Imaginei que a reportagem estaria ali para denunciar mais um posto da imensa rede de crime organizado formado em torno de distribuidoras fantasmas, que não pagam a Cide (contribuição sobre o consumo de combustíveis) na refinaria nem depois, ou que adulteram combustível, movimentando centenas de milhões de reais. Também não era.
O que poderia ser, então? Quando a câmera deu o flagrante do rapaz sacando o seu celular, imaginei que fizesse parte da conexão da Receita -os fiscais que se especializaram em aplicar multas estrondosas em empresas e, depois, aliviar a multa no computador. Também não era.
Quando o rapaz entrou em um recinto, supus que a denúncia chegasse ao sistema de bingo e de máquinas de azar que continuam operando centenas de milhões de reais em todo o país, ao arrepio da lei. Também não era.
Finalmente, o mistério se desfez. Um dos rapazes foi fotografado tomando refrigerante em uma lanchonete e namorando no intervalo do trabalho. E a legislação proíbe que condenados em regime de prisão semi-aberto se encontrem com pessoas suspeitas sem expressa autorização do juiz. Ainda mais para namorar.
Outros justiceiros da lei entraram em ação. Soube-se que o promotor Maurício Miranda, com base na Lei das Execuções Penais, entrou com uma ação para impedir os rapazes de estudar e de trabalhar. Mas eles continuaram estudando e trabalhando, num flagrante caso de mau exemplo a todos os jovens do país.
Instigado pelos jornais, o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, defensor das mais elevadas causas nacionais, caprichou no verbo e utilizou a melhor adjetivação para repercussão de episódios dessa natureza: declarou-se "estarrecido". Em geral, nesses trabalhos de repercussão da imprensa, as fontes se valem de três adjetivos preferenciais: se sentem "revoltadas", "indignadas" ou "estarrecidas". "Estarrecido", em geral, é utilizado para casos de denúncia de pedofilia, informação de que o crime organizado dominou amplos setores da sociedade, execução sumária de grávidas. Portanto estava mais que adequada para a cena escabrosa do rapaz tomando refrigerante na lanchonete. "Horripilante" traria mais impacto, mas o nobre advogado maneirou na adjetivação.
Se aprofundar as investigações, o Ministério Público do Distrito Federal talvez descubra que os jovens possam ter subornado os carcereiros com sanduíches e pizzas entregues clandestinamente em quentinhas.

E-mail - Luisnassif@uol.com.br


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