São Paulo, terça-feira, 17 de fevereiro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

O sonho americano

BENJAMIN STEINBRUCH

Na semana passada, em meio a discussões que envolvem a gestação da Alca, entrou no site do IATP (Institute for Agriculture and Trade Policy), organização não-governamental americana de Minneapolis, um documento que pode ajudar a entender por que está tão difícil chegar a um acordo que permita o nascimento da Área de Livre Comércio das Américas.
O estudo do IATP atualiza dados já levantados um ano atrás sobre o dumping praticado pelos Estados Unidos na exportação de cinco importantes produtos agrícolas: milho, soja, trigo, algodão e arroz. Dumping, como se sabe, é a venda de qualquer produto por preço inferior a seu custo. Os EUA o combatem ferozmente quando se trata de mercadorias importadas pelos americanos, impondo sobretaxas que independem de comprovação de dano para as empresas locais. Nas exportações agrícolas americanas, porém, praticam o dumping sem nenhum constrangimento.
A tabela que ilustra esse texto mostra números suficientes para deixar ruborizado até os menos fanáticos defensores do livre mercado. O algodão americano foi exportado em 2002 por um preço 61% inferior a seu custo de produção. Para produzir uma tonelada de algodão, o agricultor americano gastava US$ 2.097 e essa mesma tonelada era exportada por apenas US$ 816.
A prática do dumping está comprovada também nos outros quatro produtos agrícolas. No trigo, o preço de exportação era 43% inferior ao custo de produção. Na soja, 25%. No milho, 13%. E no arroz, 35%.
Para mostrar o volume desse dumping, o trabalho do IATP faz um cálculo levando em conta as exportações americanas de trigo em 1998, quando o dumping era de 30%. Naquele ano, as companhias multinacionais com sede nos EUA exportaram 28,3 milhões de toneladas de trigo, com um preço de US$ 34 por tonelada em média abaixo do custo de produção. Isso significa que ofereceram um desconto de US$ 963 milhões para colocar a safra no mercado internacional.
Uma análise apressada poderia concluir que os EUA prestam um grande serviço ao mundo, porque vendem alimentos mais baratos. Mas a conclusão técnica é exatamente a oposta. Ao vender produtos tão baratos, o que se torna possível em razão dos subsídios oficiais, os americanos distorcem de tal forma as práticas de mercado que arrasam as produções locais dos países em desenvolvimento. Sem condições de competir em volume e preço com os americanos, os agricultores dos países mais pobres abandonam a produção, com efeitos danosos para toda a economia do Terceiro Mundo.
Dentro dos próprios EUA, a política de dumping representa um desastre para os pequenos produtores. Segundo o IATP, as grandes corporações rurais recebem o grosso dos subsídios oferecidos pelo governo americano para compensar as perdas com a venda de produtos abaixo do custo. Por conta disso, cerca de 90 mil pequenos agricultores abandonaram a produção de 1997 a 2002, enquanto aumentava o número de grandes propriedades.
Os tão criticados subsídios agrícolas americanos, na visão do IATP, são apenas o sintoma da verdadeira doença que atinge a agricultura americana, que é o dumping. Estimativa da OCDE indica que o apoio global oferecido pelo governo dos EUA à agricultura atinge US$ 50 bilhões anuais. Só para os produtores de algodão, segundo argumento de funcionários brasileiros que atuam na OMC, teriam sido oferecidos subsídios de US$ 13 bilhões de 1999 a 2002.
Dados como esses mostram quão difíceis são os obstáculos a vencer para que o livre comércio nas Américas se torne realidade em 1º de janeiro de 2005. O Brasil quer uma Alca que possa neutralizar os efeitos maléficos dos programas internos de apoio à agricultura americana, para aproveitar suas enormes potencialidades no suprimento de alimentos ao continente. Os EUA nem querem discutir o assunto.


Benjamin Steinbruch, 50, empresário, é diretor-presidente da Companhia Siderúrgica Nacional e presidente do conselho de administração da empresa.

E-mail - bvictoria@psi.com.br


Texto Anterior: Quem é: Professora da USP estuda a obra de Euclides
Próximo Texto: Artigo: A decisão do Cade e o seu contexto histórico
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.