São Paulo, terça-feira, 17 de fevereiro de 2004

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ARTIGO

A decisão do Cade e o seu contexto histórico

JOSÉ TAVARES DE ARAUJO JR.

O caso Nestlé-Garoto trouxe novamente a política de concorrência ao centro de atenções na mídia. Por um lado, diversos profissionais da área destacaram nos últimos dias os méritos da decisão do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), que vetou a fusão daquelas empresas.
De fato, as razões dessa medida estão descritas nas legislações de todos os países do mundo que dispõem de instrumentos para controlar a concentração econômica. Por outro lado, não surpreende que a decisão tenha provocado reações inflamadas.
A função principal da lei antitruste é preservar o interesse público em economias capitalistas. Assim, é inevitável que, ocasionalmente, iniciativas empresariais importantes sejam contrariadas. Se todos os interesses privados fossem convergentes, não haveria razão para existirem instituições antitruste, que no nosso caso constituem o SBDC (Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência), formado pelo Cade, pela Seae (Secretaria de Acompanhamento Econômico), do Ministério da Fazenda, e pela SDE (Secretaria de Direito Econômico), do Ministério da Justiça.
Como a polêmica não será encerrada em breve, e certamente ressurgirá em outros processos que estão na pauta do SBDC, é oportuno examinar esse caso sob a ótica da estratégia de crescimento econômico que o atual governo vem perseguindo, cujo sucesso depende de três fatores básicos: a harmonia entre o gasto público e o investimento privado, a inovação tecnológica e os mecanismos institucionais para garantir a difusão social dos frutos do progresso técnico.
A experiência internacional das últimas três décadas mostrou que em economias abertas o governo não pode dispensar dois instrumentos cruciais e complementares para assegurar o crescimento econômico: a legislação antitruste e a política de regulação econômica. Ambos instrumentos possuem uma peculiaridade conhecida, a de que sua efetividade deriva da qualidade das normas jurídicas, cuja respeitabilidade é construída arduamente ao longo dos anos por meio de condutas coerentes por parte dos órgãos que aplicam a lei.
Embora a legislação antitruste tenha sido introduzida no Brasil há 40 anos, ela só começou a adquirir relevância depois de 1994, com a edição da lei 8.884, que estabeleceu o SBDC. Inúmeros progressos foram alcançados na última década, conferindo gradualmente maior previsibilidade, transparência e efetividade à nossa política de concorrência. Os marcos principais desse período incluem o guia para a análise dos atos de concentração, a definição de normas de leniência para combater cartéis e os esforços de cooperação internacional em distintos fóruns, como a OMC (Organização Mundial do Comércio), a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e a ICN (International Competition Network).
Tais iniciativas se aceleraram no atual governo, com a assinatura do acordo de cooperação Argentina/Brasil, que estabeleceu os procedimentos para implementar as metas do Protocolo de Defesa da Concorrência do Mercosul, a eleição da Seae para o Comitê Diretor do Fórum Latino-Americano de Concorrência e a ratificação do acordo de cooperação com os Estados Unidos que havia sido firmado no governo anterior.
Atualmente, as autoridades brasileiras estão negociando acordos similares com a União Européia e outros países da América Latina que possuem leis de concorrência. Esses instrumentos visam mitigar uma deficiência grave da política de concorrência no Brasil e no resto do mundo, que reside na ausência de um fórum multilateral capaz de lidar com o assunto.
No plano doméstico, várias inovações foram introduzidas desde 2003, como o sistema de indicadores econômicos disponível na página da internet da Seae, que visa promover a transparência das condições de concorrência em setores selecionados, e as novas metodologias aplicadas na investigação de cartéis, conforme ilustra o atual caso da indústria de cimento, que dispensou os recursos usuais de escutas telefônicas, apreensão de arquivos etc. e se baseou exclusivamente na análise econômica realizada pela Seae.
Além disso, a Seae e a SDE estão implementando diversas medidas para reduzir o tempo médio de análise dos atos de concentração e agilizar as funções complementares das duas secretarias, como atesta a recente portaria que ampliou o número de casos que serão tratados sob a forma de rito sumário.
Por fim, a interface entre regulação e concorrência adquiriu uma nova dimensão neste governo, sobretudo em áreas que afetam diretamente a qualidade de vida da população de baixa renda, como saneamento básico, gás de cozinha e produtos farmacêuticos.
Assim, diante de um cenário multilateral marcado por instituições recém-criadas na maioria dos países e pela carência de mecanismos para enfrentar conflitos de interesses derivados da crescente globalização do processo de competição capitalista, decisões como a do caso Nestlé-Garoto fortalecem não apenas os instrumentos necessários à sustentação do crescimento econômico do país, mas também a credibilidade de nossas políticas públicas no plano internacional.
Tal como no resto do mundo, inclusive nas principais economias industrializadas, a política brasileira de defesa da concorrência está longe de ser perfeita. Entretanto, ciente disso, o governo vem demonstrando sua disposição de adotar, com prudência e realismo, as providências necessárias ao aprimoramento do SBDC.


José Tavares de Araujo Jr. é secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, ex-consultor em assuntos de concorrência e regulação da Organização dos Estados Americanos, da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, do Banco Interamericano de Desenvolvimento e do Banco Mundial.


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