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ARTIGO
A decisão do Cade e o seu contexto histórico
JOSÉ TAVARES DE ARAUJO JR.
O caso Nestlé-Garoto trouxe
novamente a política de concorrência ao centro de atenções
na mídia. Por um lado, diversos
profissionais da área destacaram
nos últimos dias os méritos da decisão do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica),
que vetou a fusão daquelas empresas.
De fato, as razões dessa medida
estão descritas nas legislações de
todos os países do mundo que
dispõem de instrumentos para
controlar a concentração econômica. Por outro lado, não surpreende que a decisão tenha provocado reações inflamadas.
A função principal da lei antitruste é preservar o interesse público em economias capitalistas.
Assim, é inevitável que, ocasionalmente, iniciativas empresariais importantes sejam contrariadas. Se todos os interesses privados fossem convergentes, não
haveria razão para existirem instituições antitruste, que no nosso
caso constituem o SBDC (Sistema
Brasileiro de Defesa da Concorrência), formado pelo Cade, pela
Seae (Secretaria de Acompanhamento Econômico), do Ministério da Fazenda, e pela SDE (Secretaria de Direito Econômico), do
Ministério da Justiça.
Como a polêmica não será encerrada em breve, e certamente
ressurgirá em outros processos
que estão na pauta do SBDC, é
oportuno examinar esse caso sob
a ótica da estratégia de crescimento econômico que o atual governo
vem perseguindo, cujo sucesso
depende de três fatores básicos: a
harmonia entre o gasto público e
o investimento privado, a inovação tecnológica e os mecanismos
institucionais para garantir a difusão social dos frutos do progresso técnico.
A experiência internacional das
últimas três décadas mostrou que
em economias abertas o governo
não pode dispensar dois instrumentos cruciais e complementares para assegurar o crescimento
econômico: a legislação antitruste
e a política de regulação econômica. Ambos instrumentos possuem uma peculiaridade conhecida, a de que sua efetividade deriva
da qualidade das normas jurídicas, cuja respeitabilidade é construída arduamente ao longo dos
anos por meio de condutas coerentes por parte dos órgãos que
aplicam a lei.
Embora a legislação antitruste
tenha sido introduzida no Brasil
há 40 anos, ela só começou a adquirir relevância depois de 1994,
com a edição da lei 8.884, que estabeleceu o SBDC. Inúmeros progressos foram alcançados na última década, conferindo gradualmente maior previsibilidade,
transparência e efetividade à nossa política de concorrência. Os
marcos principais desse período
incluem o guia para a análise dos
atos de concentração, a definição
de normas de leniência para combater cartéis e os esforços de cooperação internacional em distintos fóruns, como a OMC (Organização Mundial do Comércio), a
OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e a ICN (International
Competition Network).
Tais iniciativas se aceleraram no
atual governo, com a assinatura
do acordo de cooperação Argentina/Brasil, que estabeleceu os
procedimentos para implementar
as metas do Protocolo de Defesa
da Concorrência do Mercosul, a
eleição da Seae para o Comitê Diretor do Fórum Latino-Americano de Concorrência e a ratificação
do acordo de cooperação com os
Estados Unidos que havia sido firmado no governo anterior.
Atualmente, as autoridades brasileiras estão negociando acordos
similares com a União Européia e
outros países da América Latina
que possuem leis de concorrência. Esses instrumentos visam mitigar uma deficiência grave da política de concorrência no Brasil e
no resto do mundo, que reside na
ausência de um fórum multilateral capaz de lidar com o assunto.
No plano doméstico, várias inovações foram introduzidas desde
2003, como o sistema de indicadores econômicos disponível na
página da internet da Seae, que visa promover a transparência das
condições de concorrência em setores selecionados, e as novas metodologias aplicadas na investigação de cartéis, conforme ilustra o
atual caso da indústria de cimento, que dispensou os recursos
usuais de escutas telefônicas,
apreensão de arquivos etc. e se baseou exclusivamente na análise
econômica realizada pela Seae.
Além disso, a Seae e a SDE estão
implementando diversas medidas para reduzir o tempo médio
de análise dos atos de concentração e agilizar as funções complementares das duas secretarias, como atesta a recente portaria que
ampliou o número de casos que
serão tratados sob a forma de rito
sumário.
Por fim, a interface entre regulação e concorrência adquiriu uma
nova dimensão neste governo, sobretudo em áreas que afetam diretamente a qualidade de vida da
população de baixa renda, como
saneamento básico, gás de cozinha e produtos farmacêuticos.
Assim, diante de um cenário
multilateral marcado por instituições recém-criadas na maioria
dos países e pela carência de mecanismos para enfrentar conflitos
de interesses derivados da crescente globalização do processo de
competição capitalista, decisões
como a do caso Nestlé-Garoto
fortalecem não apenas os instrumentos necessários à sustentação
do crescimento econômico do
país, mas também a credibilidade
de nossas políticas públicas no
plano internacional.
Tal como no resto do mundo,
inclusive nas principais economias industrializadas, a política
brasileira de defesa da concorrência está longe de ser perfeita. Entretanto, ciente disso, o governo
vem demonstrando sua disposição de adotar, com prudência e
realismo, as providências necessárias ao aprimoramento do
SBDC.
José Tavares de Araujo Jr. é secretário
de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, ex-consultor em assuntos de concorrência e regulação da
Organização dos Estados Americanos, da
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, do Banco Interamericano
de Desenvolvimento e do Banco Mundial.
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