São Paulo, terça-feira, 17 de fevereiro de 2004

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LUÍS NASSIF

O bingo e o novo capitalismo

O artigo de Paul Krugman, publicado na Folha de domingo -sobre os livros "American Dynasty", de Kevin Phillips, e "The Price of Loyalty", de Ron Suskind-, mostra que, pouco a pouco, vai sendo montado o quebra-cabeça da grande farra financeira em que se converteu o capitalismo mundial nas últimas décadas.
O artigo de Krugman se limita a lançar luzes sobre os esquemas que cercam o presidente norte-americano, George W. Bush. Mas é interessante entender o ambiente que permitiu a montagem não apenas do esquema Bush, mas a proliferação do crime organizado e de todos os grandes golpes corporativos denunciados nos últimos anos.
Historicamente, cabia aos Estados nacionais a criação de um aparato regulatório, não apenas para permitir o adequado funcionamento da economia, como para separar o legal do ilegal, o lícito do criminoso.
Nos anos 70, houve o fim do padrão-ouro. Até então, o mercado de câmbio oficial era controlado, havia um movimento de câmbio paralelo pouco expressivo, o narcotráfico não adquirira as dimensões de hoje, e não havia a integração do sistema bancário internacional.
A partir dos anos 70, começou a ocorrer a integração do sistema bancário e dos mercados cambiais. Ampliam-se os paraísos fiscais e, neles, há a criação de novas empresas jurídicas, com o objetivo de colocar o dinheiro e as corporações a salvo do controle dos Estados nacionais.
São as chamadas empresas "offshore", muitas delas empresas de fachada, que blindam o dinheiro de seus controladores, separando a gestão (o "limited partner") do investimento (o "general partner").
Muitas vezes são colocados testas-de-ferro nas "limited partners", assumindo as responsabilidades civis e criminais, deixando as empresas livres do controle da SEC e de outros organismos de fiscalização.
A salvo das estruturas de fiscalização dos Estados nacionais, quebraram-se as barreiras entre as atividades legais e o crime organizado. Foram criados fundos atrás de retornos expressivos, maiores do que os das atividades convencionais, que passam a atuar por meio de empresas de fachada, alguns servindo de biombo para o dinheiro do crime organizado, outros para golpes contra as próprias corporações.
Os donos da liquidez internacional passaram a conviver no mesmo ambiente. São os sheiks árabes ainda sentados em petrodólares, a dinastia Bush, as Enron da vida, os empresários italianos tipo Sergio Cragnotti, os grandes bancos internacionais, dinheiro do narcotráfico, dinheiro da corrupção política, mercado negro da venda de jogadores etc.
O Brasil ocupa papel relevante como arena desse tipo de negócio. A privatização sem um ambiente regulado, a facilidade das contas CC5 e CC4, a derrama fiscal e o florescimento de atividades clandestinas, culminando com o absurdo da autorização para o funcionamento dos bingos e videopôquer, tudo isso criou o campo que hoje explode na atual crise política que fere o centro do poder institucional brasileiro, com o episódio Waldomiro Diniz.
É importante o país começar a se debruçar sobre essa questão, mas de forma mais ampla. O jogo é muito mais pesado do que a máfia do bingo.

E-mail - Luisnassif@uol.com.br


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